Para começar, algumas perguntas meio chocantes fazem sentido. Mudaram a palavra de Deus ao longo da história do cristianismo? Por que a Bíblia que usamos contém tanto erro de tradução? Por que os copistas mudaram as Escrituras? Com que interesse? O que realmente Jesus falou e que não chegou até nós porque os homens deturparam tudo, com suas traduções erradas e carregadas de intenções?
Lendo o livro de Bart D. Ehrman (Misquoting Jesus: The Story Behind Who Changed The Bible and Why), tem-se a impressão de que os homens fabricaram uma outra Bíblia para satisfazer às particularidades da sua cultura religiosa de época. Ehrman é considerado a maior autoridade em Bíblia do mundo, devido aos mais de 30 anos de estudos e avançadas pesquisas sobre as traduções das Escrituras. Ele estudou as línguas originais, isto é, grego, hebraico, aramaico e outras para poder mergulhar de cabeça, com segurança, nas pesquisas. Agora, seu livro acaba de ser publicado no Brasil pela Prestígio Editora (SP), sob o título “O que Jesus disse? O que Jesus não disse?”, endossado por um subtítulo que aumenta ainda mais o intrigante tema: “Quem mudou a Bíblia e por quê”.
Bart D. Ehrman afirma que, ao estudar os textos da Bíblia nas suas línguas originais, ficou estarrecido ao descobrir a quantidade de erros e alterações intencionais feitas pelos tradutores antigos, fato que o levou a acreditar que a Bíblia contém a palavra de Deus, mas não em absoluto. Posto que parte do que nela está escrito são simplesmente palavras humanas.
As pesquisas de Ehrman fazem alusão ao fato de que, diante de tantas ideologias e filosofias pessoais da época, só o judaísmo insistia em leis, costumes e tradições ancestrais, defendendo que isso fosse registrado em livros sagrados com o status de “escritura” para o povo judeu. Isso resultou num diferencial descomunal entre os códigos éticos e morais antigos. Quem estava fora das leis judaicas era considerado pagão. Para Ehrman, tudo começa por aí.
Logo após a morte e a ressurreição de Jesus, muitas pessoas que ouviam pregações sobre os acontecimentos a respeito desse fato se converteram ao cristianismo e, então, estavam interessados em saber mais a respeito. Em virtude disso, numerosos evangelhos foram escritos para registrar as tradições associadas à vida de Jesus. Quatro desses evangelhos – Mateus, Marcos, Lucas e João – no Novo Testamento passaram a ser mais usados, todavia muitos outros foram escritos por seguidores de Jesus de Nazaré como, por exemplo, Filipe, Judas, Tomé, Maria Madalena e outros.
Outros escritos, dos mais primitivos, se perderam, conforme diz Lucas que afirma que, para escrever o seu relato, teve de consultar muitos escritos precedentes (lc 1.1). Esses escritos consultados por Lucas não sobreviveram ou, pelo menos, maioria deles desapareceu. Naturalmente, Lucas, como outros escritores, só tiveram o cuidado de escrever alguma coisa sobre o seu Mestre alguns anos depois de sua morte e ressurreição. Isso caracteriza o fato de a Bíblia ser, em seu todo, “cópias de cópias das cópias das cópias”. Além disso, essas cópias foram feitas com base em fragmentos dos manuscritos achados em épocas alternadas. Obviamente, foi um trabalho extremamente demorado e carregado de dificuldades.
Foi aí, então, que as traduções bem como as interpretações foram mal feitas. Para Bart Ehrman, um desses relatos primitivos pode ter sido a fonte que os pesquisadores designaram como “Q”, uma espécie de relato escrito principalmente dos ditos de Jesus, usado por escritores como Lucas e Maria Madalena. O “Q” não existe mais, todavia era um documento real que armazenava informações fidedignas sobre as palavras e atividades de Jesus como, por exemplo, a Oração do Senhor e as Bem-aventuranças. O nome “Q” é uma abreviatura da palavra alemã Quille, que quer dizer “fonte”, referindo-se à fonte para a maior parte do material dos ensinamentos de Jesus presente em Mateus e em Lucas.
Mais tarde, alguns anos depois da ressurreição e ascensão de Jesus, o apóstolo Paulo, convertido ao cristianismo depois de um advento espiritual a caminho de Damasco (ele perseguia os cristãos como aconteceu, por exemplo, com Estevão o qual foi morto apedrejado por comando do próprio Saulo de Tarso, na época um agente da força oficial romana), passou a interpretar a vida de Jesus e, a partir daí, começou a escrever copiosas cartas a cristãos de várias regiões do Mediterrâneo oriental – inclusive centros urbanos – e de Roma. Segundo Ehrman, o apóstolo fazia isto à luz das Escrituras judaicas. Ou seja, a presença da cultura judaica nos escritos e ensinamentos dos primeiros líderes cristãos era muito acentuada e carregada de bravura religiosa.
O problema das alterações nas traduções dos textos bíblicos começa já entre o fim do primeiro e início do segundo séculos com briga declarada entre facções da agora religião cristã. A questão principal na escala dos problemas dizia respeito à variedade de interpretações da “verdade” pregada por Jesus. Aí surgem, então, as primeiras heresias e, com elas, os tratados anti-heréticos. Paulo foi o mais obstinado líder que se levantou contra os que ele mesmo chamou de “falsos mestres”.
Cada grupo ou corrente cristã entendia os escritos bíblicos à sua forma e, então, tinha interpretações diferentes. Para conter esse problema, os líderes cristãos começaram a escrever tratados contrários aos “hereges”. Alguns escritos de Paulo são combatentes ao movimento herético no início da era cristã. Houve, então, um esforço conjunto de todos os cristãos para tentar estabelecer o “ensino verdadeiro”, começando, aí, uma literalidade ortodoxa no contexto histórico do desenvolvimento do cristianismo. Os tratados anti-heréticos tomaram parte fundamental na literatura cristã dos primeiros séculos d.C. e sucessivamente.
O mais curioso é que mesmo os considerados “falsos mestres” também escreveram tratados contra “falsos mestres”. Todos em defesa do cristianismo, como se fossem advogados da religião cristã. Aliás, esse era exatamente o seu papel. Bem aí acontece algo interessante: às vezes o grupo que estabelecia, contundentemente, aquilo em que os cristãos deveriam acreditar – como os responsáveis pelos credos que chegaram até nós – era desautorizado por cristãos que defendiam posições consideradas falsas.
Vejamos: isso é o que foi constatado em recentes descobertas na literatura herética em que os chamados hereges, ao escreverem, defendem que sua visão é a correta e acusam que a visão dos líderes eclesiásticos ortodoxos era falsa. Nesse ínterim, tem-se, por exemplo, os tratados conhecidos como Apocalipse de Pedro e o Segundo Tratado do Grande Seth, ambos descobertos em 1945 num escondirijo de documentos gnósticos próximo à aldeia de Nag Hammadi, no Egito. Entre tantos outros, o Apocalipse de Pedro e um segundo Apocalipse de S. João, o Apóstolo, foram considerados apócrifos.
Parte considerável do debate sobre a reta e a falsa crenças implica a interpretação dos textos cristãos, inclusive do Antigo Testamento. Os cristãos reivindicavam que esses textos fizessem parte de sua própria Bíblia. Nesse sentindo, os textos selecionados foram centralizados para a vida das primeiras comunidades cristãs. Tempos posteriores, os escritores cristãos começaram a escrever interpretações desses textos na intenção de estabelecer certa relevância para a prática da vida cristã.
Muitas vezes, essas interpretações objetivavam disciplinar a orientação da comunidade cristã no sentido de que houvesse um conservadorismo não do que Jesus dissera mas, sim, do que os líderes cristãos pensavam (em evidência a sua interpretação) a respeito do que Ele disse. Historicamente, outro fato curioso traz à tona a figura de Heraclião, um líder cristão gnóstico, considerado herético, que viveu no II século. Ironicamente, foi ele quem escreveu o primeiro comentário cristão sobre cada texto das Escrituras. Por conseguinte, cada autor cristão escrevia ou traduzia os textos sagrados segundo a sua própria visão cristã. Esses fatos ocorreram, principalmente, durante os séculos III e IV d.C. Isso explica por que a Bíblia tem partes que parecem contradizer outras.
Nesse caso, o que temos em mãos, hoje, são apenas sucessivas cópias de cópias de comentários de fragmentos dos textos sagrados de homens que tinham visões diferentes e consequentemente interpretações diferentes das escrituras. Não temos nada original tal qual Jesus e os apóstolos falaram. O gnosticismo, por exemplo, vem da palavra grega gnosis que quer dizer “conhecimento”. O termo se aplica a um grupo de religiões surgidas do século II em diante que enfatizavam a importância de receber o conhecimento secreto para salvar-se do mal, isto é, do mundo material.
O gnosticismo, portanto, vê o mundo material como “o mal”, o que é muito parecido com o nosso pensamento cristão hoje. E, consequentemente, muitos textos da Bíblia que temos em mãos dão margem a essa forma de pensamento. Talvez deve-se isso ao fato de cristãos gnósticos terem tido forte participação nos comentários e traduções dos textos bíblicos durante os séculos II, III e IV.
A verdade é que temos de ter maturidade suficiente para entender que a Palavra de Deus não é simplesmente o conteúdo integral da Bíblia que temos, mas, sim, aquilo que foi dito sobre a pessoa do Verbo encarnado, o testemunho e a ação do Espírito Santo a respeito do Cristo (Salvador Eterno) em todos os tempos. A bibliolatria e o fundamentalismo bíblico me parece desconcentrar a pessoa do Verbo como fundamento absoluto da vida eterna. Portanto, a Bíblia contém a Palavra de Deus, isto é, o testemunho do Verbo divino que orienta o homem para a vida eterna.