VIAGEM PELAS RUAS DE UMA REALIDADE DESCONSTRUÍDA
Depois
de alguns anos de silêncio literário, a escritora Wanda Cristina reaparece para
descortinar, com texto teatral, persistente realidade de São Luís
“Ali”
está Joãozinho, vez em quando engraxando sapatos de algum transeunte menos
insolente. Um pouco mais ao lado, está Mariazinha vendendo chicletes, aqui-acolá, a algum complacente que por
acaso não se recuse a comprar.
No
doloroso vai-e-vem da necessidade nua e crua, está uma mendiga com a vida cheia
de sabedoria formada na escola das mazelas sociais. Perdida nas indefinições do
destino sem sentido, está Aquília, uma garotinha fugitiva, perambulante pelas
ruas da existência [cruel] e que
carrega, na bagagem da inocência, sofrimento e maus tratos.
Ao
redor de todos, casarões de azulejos velhos, encardidos pelo tempo, guardam uma
história de escravismo violento. No cerne da cidade há uma política nefasta — conivente com a
pobreza, a miséria e a vida maltrapilha de mendigo — e, de quebra, fazeres
obscuros e ações pouco eficazes. No âmbito de tudo isso, está São Luís, uma
cidade capital composta de ruas esburacadas exalando mau cheiro, insegurança e sujeira...
E que, à sombra disso e de outras “coisas” mais, escondem-se lendas e mistérios:
assombrações eternizadas de figuras lendárias, como Ana Jansen; misterioso
animal ofídico como a serpente encantada e outras inusitadas crendices
populares sem “pé” nem “cabeça”.
No
meio dessas realidades inquietantes está Wanda Cristina da Cunha, uma curiosa
observadora que — com sua veia genética literária,
sendo, pois, filha de poeta, jornalista e escritor — não perde uma cena e se
esmera em narrar, efetivamente, tudo no silêncio dos detalhes. Silêncio que só é
quebrado, apenas, pelo tec-tec dos
dedos beijando as teclas do computador, mas que jamais se deixa levar pelo
“vício” da tecnologia ultramoderna — típica da redação virtual, que tem visualizado uma
intelectualidade pouco criativa.
A
autora, pelo contrário, tem originalidade redacional e uma escrita acima de
tudo inteligente: isto fica claro nas cantigas inócuas das crianças, nos diálogos
sacrossantos e pouco fraternais das igrejas, na fala moderada do soldado
solitário, na cordialidade cínica dos políticos, na lábia espertinha do
vendedor de pamonha, na aparição fantasmática de Ana Jansen e na parva crendice
da lenda da serpente. Serpente? Sim, serpente que abocanha principalmente
aquilo que pode tirar as crianças da rua, a mendiga da mendicância e,
finalmente, pode deixar o povo feliz.
Face
a tudo isso aí, Wanda lança olhar horizontal sobre São Luís e acaba tendo uma
visão panorâmica da cidade enfeitada de azulejos e casarões que, por força das
más administrações públicas, se perpetua deitada sob o lençol de uma realidade
desestruturante e escassa. Isto, sim, em quase todos os aspectos. Para ser mais
claro. Obviamente!
Os
personagens da autora se cruzam ruas a fora. Entreolham-se e se confraternizam.
Todos, finalmente, estão prontos! Prontos para ingressarem numa Viagem
às ruas de São Luís e, então, percorrerem um universo de inocência
roubada de duas crianças... — Crianças que não pediram para nascer, não pediram para virem
ao mundo! Nem sabem por que vieram ao mundo! Mas que têm o direito de viverem
uma vida digna. — O caminho faminto de
uma mendiga desorientada na sua sabedoria perambulante, sem teto. O esconderijo
ao relento de uma menina perdida no labirinto sem fim de sua própria realidade.
Uma realidade que, aliás, ela não construiu. Nem sabe quem a construiu. Mas que
se vê obrigada a encara-la.
Pois
bem! Vagantes pelo caminho desse universo de mazelas sociais e vácuo mental,
Joãozinho, Mariazinha, a mendiga e a garota Aquília seguem em frente. A estrada
é longa, para algumas “estações”. E curta para outras. Mas as paradas são
sempre as mesmas coisas: fome, mendicância, irritação, melancolia, sujeira e falta
de segurança.
Mesmo
assim, há um pouco de razão para pensar: “criança que mendiga, quando cresce
vira mendigo”, diz a mulher mendicante. Na sua experiência, ela explica: “Na
rua, a gente acaba fazendo um monte de coisas, mas sempre volta à estaca zero.
Quando não, cai num precipício”. Ao ouvir isto da mendiga, Mariazinha não
compreende. E instiga: “como assim?”. Mas Joãozinho, parecendo ser mais safo
nas coisas do mundo da rua, explica: “é como uma bicicleta sem corrente que tu
pedala ele, pedala ela, mas ela nunca sai do lugar”.
Joãozinho
diz que a mendiga é fedorenta. E, embora sem saber, o garoto acaba se referindo
à mentalidade que rege, por manobras políticas, a administração pública. Esta,
sim, parece feder mais que qualquer outra coisa. Joãozinho diz isso pelo
sentido da razão química que as cheiradas de cola lhe proporcionam.
Wanda
dá espaço para a gente fazer uma hermenêutica sociocultural que mostra,
claramente, que em São Luís tudo é inusitadamente possível, como na fala da
borboleta: “Eu sou uma borboleta diferente. Nunca fui crisálida, nunca fui
lagarta, fui princesa. Mas minha coroa caiu e virei serpente”. Como acontece na
política do Maranhão, como do Brasil: pessoas boas se transformam em bandidos
logo após uma campanha política vitoriosa; pais de família honestos, desempregados,
viram homens revoltados, após uma separação traumática e enxertada de
perseguição judicial ornada de injustiça; inocentes viram vilões perigosos após
passarem pelo túnel da crueldade do sistema social. Bem assim asseverou
Leonardo Boff: “Todos vivemos atrás das grades de leis, normas, prescrições,
tradições, prêmios e castigos. Assim funcionam as religiões e as sociedades
que, com tais instrumentos, enquadram as pessoas, mantêm-nas submissas e criam
a ordem estabelecida”. É isto. As sociedades vivem sempre na contramão de tudo
o que é certo: negociam o bem pelo mal, o honesto pelo desonesto, a paz pela
violência, a justiça pela injustiça, o justo pelo suborno, o amor pelo ódio, a
igualdade pela desigualdade, a distribuição pela miséria, a fraternidade pela
maldade.
A
geração da escritora Wanda Cristina é uma geração de leitores fissurados. Por
isso sua criatividade literária cheia de inteligência. Cheia principalmente de
vontade. Vontade de mudar a realidade de São Luís. Vontade de ver tudo
diferente. De ver São Luís crescer. Vontade de poder viver da criatividade
literária, mas que o triunfo do individualismo e da anomia impede.
O
verdadeiro escritor brasileiro — principalmente o maranhense — tem, lamentavelmente, de fazer todas as
outras coisas antes de escrever. E quando escreve, o reconhecimento fica
adormecido nas sombras da escassez de leitores, na falta de apoio literário, na
ausência de política cultural para o livro. Mas mesmo assim Wanda é forte e
polivalente, e faz arte literária com o rigor da simplicidade e da sapiência. Manda o seu recado, no tempo e na história,
para o mundo da arte. Wanda é um exemplo ideal de quem, realmente, faz arte
literária. Seu livro merece ser lido e disseminado nas escolas, na política e
no teatro. Sua crítica traz lucidez ante à obscuridade da escassez de consciência. Uma consciência que emana, inteiriça, da cabeça dura dos homens que têm medo da intelectualidade dos poetas e escritores. Isto porque os poetas e escritores sempre pensam muito à frente de sua época.
Como disse Arthur Schopenhauer (1788-1860), os ecritores "nunca acreditam que toda mudança é progresso", mas apenas um motivo para se pensar mais adiante. E os homens, principalmente os políticos e governantes, têm pavor disso. Morrem de medo do que se possa pensar no âmbito do novo. Ou da resposta introdutória de uma simples ideologia do pensar com a tinta da pena. A escrita de um pensador assusta. Principalmente quando se trata de uma leitura interessante, capaz de influenciar alguém. Principalmente se esse "alguém" for um sujeito de coragem, que possa levar o que viu, à luz do entendimento, mais adiante, para outros "mundos" no meio do universo.
Nelson
Werneck Sodré, por outro lado, destaca: “A vida intelectual é, na realidade,
permanente troca de ideias, de influências, de elogios, de pedidos”. Wanda Cristina da Cunha faz a gente crer que seus escritos não são meramente um aprimoramento de tudo o que já foi dito, e escrito, mas um aspecto intrigante da reflexão absolutamente possível. E disto também os homens têm medo. Por isto, Viagem às ruas de São Luís, de Wanda Cunha, promete levar os amantes da educação e da arte a um contínuo refletir.
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