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terça-feira, 24 de setembro de 2019

Artigo: O VERBO É MAIS QUE PALAVRAS - Pr. Fábio Leite


O VERBO É MAIS QUE PALAVRAS





Pr. Fábio Leite *[1]
Formado em letras e teologia, pastor Fábio Leite é capelão da PMMA na patente de capitão e pastor-auxiliar da Assembleia de Deus em São Luís-MA (área 26, Habitacional Turu), da CEADEMA (Convenção Estadual da Assembleia de Deus no Maranhão), ligada à CGADB (Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil). É também coordenador do Conselho Fiscal da CEADEMA.
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No livro de Mateus (5.20), o Senhor Jesus Cristo disse, durante seu discurso no Sermão da Montanha, o seguinte: “Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus”. Ou seja, o Verbo ― enquanto revelação da justiça de Deus aos homens ― é mais que palavras. Por isso a justiça dos discípulos de Jesus precisa exceder em muito a dos líderes religiosos cujas pregações são de censura e julgamentos. O Verbo, então, é liberdade. Só que é uma liberdade diferente. Trata-se de uma liberdade para manifestação da justiça que traz pão e água cuja finalidade é saciar a fome e a sede dos homens no mundo, os quais são oprimidos pelas injustiças nele existentes.
Em vários momentos do Novo Testamento, Jesus deixou claro que a justiça dos líderes religiosos da sua época, conhecidos como fariseus, era uma justiça apenas de palavras e de práticas autocontemplativas, algo não muito diferente dos nossos dias entre certos líderes de igreja. Os dias modernos têm sido difíceis para a Igreja de Jesus, uma vez que a ética e a moral dos cristãos têm merecido ser objeto de estudo.
Minha formação em letras e teologia me permite tecer um diálogo entre a palavra literária e a palavra da verdade do evangelho do nosso Senhor Jesus Cristo. Ele disse: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8.32). Neste aspecto, a verdade a que o Senhor se refere está relacionada ao Verbo e à justiça do reino dele que resultarão na liberdade do homem no âmbito da sua existência: espiritualidade e materialidade, isto é, a pregação e o serviço social da igreja.
No contexto do evangelho, a palavra liberdade tem a ver com a justiça divina e com a vontade espontânea de se fazer alguma coisa. A liberdade é uma propriedade da própria pessoa humana, isto é, propriedade de si mesmo. O Espírito de Deus se manifesta no nosso senso de liberdade para fazermos, com liberalidade, as coisas que Ele coloca no nosso entendimento e coração. Entendo que a manifestação do Verbo encarnado no mundo humano nos traz liberdade. Não uma liberdade qualquer, mas a libertação dos paradigmas tradicionais que nos aprisionavam a um passado antigo, caducado na mente humana e gerando todo tipo de injustiça. Quando caducada no labirinto de culturas e crenças tradicionais, a religiosidade nos aprisiona a um circuito de injustiças que dificultam as boas relações humanas. E isso quebra os princípios sagrados universais do corpo de Cristo. Em razão disto, o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Ou seja, ele se fez carne e habitou entre nós para nos resgatar das injustiças geradas pelas crenças tradicionais. Agora estamos diante da porta libertadora: Cristo, o Justo (1 João 1.9; Romanos 3.26; Atos 3.14; 1 João 2.1).
O Espírito Santo opera no nosso coração, nos libertando da servidão da lei para, uma vez livres, estarmos aptos para praticar a obra do Evangelho com justiça e amor no plano existencial-divino entre as relações sociais. Seguindo este raciocínio, Jesus disse que devemos amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo. O que isto significa? Significa que o Verbo, que se fez carne, trouxe uma mensagem real de vida que se traduz em pão e água aos que têm fome e sede de justiça num mundo de injustiçados. Portanto, o Verbo se fez gente como a gente, habitou entre nós e trouxe libertação aos povos do mundo, independente de sua natureza antropológica, isto é, de suas culturas e tradições.
Nesse viés, o conhecimento cristão nos dá quatro espécies de liberdade trazidas pelo Verbo que se fez carne, tornando-se, portanto, gente como a gente: (1) liberdade natural; (2) liberdade civil; (3) liberdade política; (4) liberdade espiritual-existencial. Nestes quatro pilares, vemos a expressão do Verbo que se fez carne e habitou entre nós para operacionalizar o evangelho do reino por um viés acima de tudo fundamentado nos princípios da justiça de Deus. Vejamos, a seguir, como isso ocorre.
Em primeiro lugar, o Verbo se fez carne e revelou a liberdade natural entre os homens no mundo. Esta liberdade acontece no âmbito da liberdade do homem enquanto homem, do ser enquanto ser, no plano do autoconhecimento e da autoconsciência para a governabilidade de si mesmo e do ambiente onde ele habita. Deus criou o homem para viver exatamente essa liberdade natural no crescimento e na multiplicidade (Gênesis 1.28), e, por via dessa mesma liberdade natural, governar a terra com suas ações baseadas na racionalidade. O homem é um animal racional por natureza e por isso mesmo ele pensa naturalmente os planos da existência em defesa da vida.
Em segundo lugar, o Verbo se fez carne e se manifestou na liberdade civil de grupos sociais. Esta liberdade é a liberdade do sujeito enquanto cidadão, na qualidade de “ser” organizado e participativo nas atividades de transformação social. Aqui o homem é um ser inteligente inserido no processo cultural-civilizatório e, portanto, efetivamente responsável pelo desenvolvimento da sociedade no decorrer da história. A liberdade civil trabalha exata e efetivamente as relações dos cidadãos entre si, reguladas por normas sociais e levando em conta o indivíduo considerado em suas circunstâncias particulares dentro da sociedade organizada em forma de grupos constituídos de seres humanos pensantes.
Em terceiro lugar, o Verbo se fez carne e trouxe liberdade política que, por sua vez, é a liberdade do indivíduo enquanto povo responsável pela sua organização social e autogovernabilidade. Aqui se manifestam as autocracias, ou seja, os modelos de governo humano. Assim, a liberdade política é uma arte inata inerente à consciência e à inteligência social do homem para governar a família, a comunidade e os povos. Por este ponto, o homem desenvolve habilidade basicamente peculiar no trato das relações humanas, com vista à obtenção dos resultados desejados. Quando a Bíblia diz que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (João 1.14), significa que a Palavra Viva de Deus se materializou em uma humanidade dinâmica cujas atividades vislumbram uma hierarquia de forças que se estabelecem no interior das civilizações da comunidade-mundo. Este é o Deus presente nas numerosas relações sociais constituídas entre indivíduos e grupos.
Em quarto lugar, o Verbo se fez carne e revelou a sua glória como liberdade espiritual-existencial para dar sentido na vida dos que estavam perdidos no mundo. Esta liberdade é aquela liberdade que nos conecta a Deus por amor a Ele e não por obrigação religiosa. O reflexo desta liberdade alcança as relações fraternais e antropológicas na dimensionalidade do conselho divino. O Verbo é “Maravilhoso Conselheiro...” (Isaías 9.6) e o seu maravilhoso conselho veio ao mundo em forma de evangelho, sendo vida e luz aos homens que, por sua vez, viram a sua “glória como do unigênito do Pai” (João 1.3-14) e, portanto, trazendo verdadeira liberdade ao mundo (João 8.32). De fato, a liberdade espiritual-existencial é a liberdade de agir conforme a vontade do Espírito e não conforme a vontade da carne. Isto significa que podemos atuar em total concordância com a essência divina, a consciência e a vontade. Liberdade espiritual, então, é poder fazer tudo e ainda ter a sabedoria de não ser escravo das próprias vontades. Podemos fazer tudo, exercendo, inclusive, o poder da liberdade para governar nossas ações em Deus com alegria e paz no coração. Trata-se de uma autogovernabilidade no direcionamento do caminho da justiça do bem, nos livrando da escravidão do mal.
Quando o Senhor Jesus disse que “... o Verbo se fez carne e habitou entre nós...” (João 1.14), anunciou, aí, uma verdade verbalizada, mas que não era apenas palavras. Andrés Torres Queiruga, filósofo e teólogo autor de muitas obras teológicas e pastorais, disse que o Verbo manifestou-se em forma da “glória de Deus na vida humana num mundo de crucificados”.[2]
O autor fala da vida humana que sempre esteve assediada pelo mal. E a responsabilidade de quem segue o Verbo que se fez carne é resolver os problemas gerados por esse mal. Mal este que se tornou “mal social”, reproduzindo infinitas mazelas sociais como, por exemplo, fome, pobreza, miséria, violência e outras. Frente a isso, o Verbo que se fez carne gerou um corpo espiritual que, agora, está cercado de desafios. Neste ponto, o Verbo é mais que palavras, uma vez que Ele constituiu um corpo espiritual, a Igreja de Jesus, para se importar com a situação e a concretude feliz da vida humana.
Há, aqui, uma teodiceia que vocifera perante a humanidade a mensagem acerca do Deus que é justo, bom e que tudo pode diante da existência do mal no mundo. Face a isto, o Verbo que se fez carne nos leva a entender as necessidades daqueles que estão sendo crucificados por esse mal social que os deixa humilhados perante a vida.
No fundo da igreja pastoreada por mim, em São Luís do Maranhão, tinha uma famosa casa de prostituição. Naquela casa, homens e mulheres ganhavam a vida vendendo seu próprio corpo, perdendo sua própria alma e, portando, sendo humilhados pelo espírito do mal. Ali pessoas jovens e bonitas ganhavam a vida perdendo a sua alma para um mundo traiçoeiro e cruel degradador de vidas humanas. A prostituição é uma atividade aviltante e desonrosa, em que a pessoa se sujeita a expor a intimidade do seu corpo em troca de certa quantia de dinheiro que não representa muita coisa. E isso é uma situação humilhante, destruidora da honra humana. É preciso ser muito fraco da mente para acreditar que a prostituição não é uma “profissão” maculadora e vergonhosa.
Certo dia, orando a Deus, senti no coração que a igreja deveria comprar aquela casa.  Então, mobilizei a congregação, fizemos uma campanha arrecadatória e negociamos aquele imóvel por meio milhão de reais, com alguns pequenos acréscimos. Deus nos ajudou e, assim, conseguimos adquirir aquele ambiente de degradação da moral humana bem como da sua existencialidade. Com esforço e dedicação, conseguimos fazer com que um local onde era promovido culto à prostituição, agora é um ambiente de restauração de vidas humanas degradadas. Entendo que o Verbo se fez carne para realizar no mundo uma obra libertadora na mente e no coração de homens e mulheres que estejam dispostos a mudar de vida.
A justiça se manifestou no Verbo e o Verbo se manifestou em forma de justiça. Isto trouxe rupturas sociais de grandes complexidades envolvendo a cultura civilizacional dos seres históricos e gerando respostas para as grandes perguntas da humanidade. Nem mesmo a teologia explica isso com clarividência. O evangelho é processado nos quatro pilares da liberdade mencionados acima e até mesmo a igreja não consegue explicar essa equação existencial para os homens no mundo. Ela vivencia as boas novas do evangelho mas, infelizmente, não sabe discernir a sua essência perante os alcançáveis.
Enfim, o Verbo se fez carne para alcançar a todos num mundo que, agora, se encontra totalmente secularizado. Esta é uma lógica que coloca a igreja corpo de Cristo ― corpo social em Cristo ― em sintonia com os pressupostos da possibilidade de um mundo-sem-mal. A igreja não deve pregar um evangelho apenas de palavras, mas sim um evangelho de ações transformadoras. Seria o caso de se pensar em realizar um procedimento de atitudes “criaturais”, focadas em criaturas humanas com suas necessidades. Realizar ações de combate aos males do mundo traduz o Verbo que se fez carne em resultados concretos que atenuam as necessidades dos injustiçados.
O povo que crê em Deus ― e o serve ― precisa se fazer acreditar diante daqueles que já não têm esperança de um mundo melhor. Os quatro pilares da liberdade (natural, civil, política e espiritual-existencial) evidenciam o Verbo que se fez carne por meio de atitudes relevantes da igreja de Jesus Cristo perante um mundo que é massacrado por todo tipo de injustiça social-humana. Somente desta maneira o corpo de Cristo pode representar a manifestação da sua glória, com graça e verdade (João 1.14), no cumprimento da missão do Evangelho da vida (João 1.4). Vida, aqui, está na dimensão dos quatro pilares da liberdade: natural, civil, política e espiritual-existencial.



[1] *Colaboração: Pr. Battista Soarez. Escritor, jornalista, pedagogo, sociólogo, Assistente Social e professor universitário.
[2] Andrés Torres Queiruga. In Degislando N. de Lima & Jacques Trudel (orgs.). Teologia em Diálogo. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 141.