O VERBO É MAIS QUE PALAVRAS
Formado em letras e teologia, pastor
Fábio Leite é capelão da PMMA na patente de capitão e pastor-auxiliar da
Assembleia de Deus em São Luís-MA (área 26, Habitacional Turu), da CEADEMA
(Convenção Estadual da Assembleia de Deus no Maranhão), ligada à CGADB
(Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil). É também coordenador do
Conselho Fiscal da CEADEMA.
No
livro de Mateus (5.20), o Senhor Jesus Cristo disse, durante seu discurso no Sermão
da Montanha, o seguinte: “Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder
em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus”. Ou
seja, o Verbo ― enquanto revelação da justiça de Deus aos homens ― é mais que
palavras. Por isso a justiça dos discípulos de Jesus precisa exceder em muito a
dos líderes religiosos cujas pregações são de censura e julgamentos. O Verbo,
então, é liberdade. Só que é uma liberdade diferente. Trata-se de uma liberdade
para manifestação da justiça que traz pão e água cuja finalidade é saciar a
fome e a sede dos homens no mundo, os quais são oprimidos pelas injustiças nele
existentes.
Em vários momentos do
Novo Testamento, Jesus deixou claro que a justiça dos líderes religiosos da sua
época, conhecidos como fariseus, era uma justiça apenas de palavras e de
práticas autocontemplativas, algo não muito diferente dos nossos dias entre
certos líderes de igreja. Os dias modernos têm sido difíceis para a Igreja de
Jesus, uma vez que a ética e a moral dos cristãos têm merecido ser objeto de
estudo.
Minha
formação em letras e teologia me permite tecer um diálogo entre a palavra
literária e a palavra da verdade do evangelho do nosso Senhor Jesus Cristo. Ele
disse: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8.32). Neste
aspecto, a verdade a que o Senhor se refere está relacionada ao Verbo e à
justiça do reino dele que resultarão na liberdade do homem no âmbito da sua
existência: espiritualidade e materialidade, isto é, a pregação e o serviço social
da igreja.
No
contexto do evangelho, a palavra liberdade tem a ver com a justiça divina e com
a vontade espontânea de se fazer alguma coisa. A liberdade é uma propriedade da
própria pessoa humana, isto é, propriedade de si mesmo. O Espírito de Deus se
manifesta no nosso senso de liberdade para fazermos, com liberalidade, as
coisas que Ele coloca no nosso entendimento e coração. Entendo que a
manifestação do Verbo encarnado no mundo humano nos traz liberdade. Não uma
liberdade qualquer, mas a libertação dos paradigmas tradicionais que nos
aprisionavam a um passado antigo, caducado na mente humana e gerando todo tipo
de injustiça. Quando caducada no labirinto de culturas e crenças tradicionais,
a religiosidade nos aprisiona a um circuito de injustiças que dificultam as
boas relações humanas. E isso quebra os princípios sagrados universais do corpo
de Cristo. Em razão disto, o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Ou seja,
ele se fez carne e habitou entre nós para nos resgatar das injustiças geradas
pelas crenças tradicionais. Agora estamos diante da porta libertadora: Cristo,
o Justo (1 João 1.9; Romanos 3.26; Atos 3.14; 1 João 2.1).
O
Espírito Santo opera no nosso coração, nos libertando da servidão da lei para,
uma vez livres, estarmos aptos para praticar a obra do Evangelho com justiça e
amor no plano existencial-divino entre as relações sociais. Seguindo este
raciocínio, Jesus disse que devemos amar a Deus sobre todas as coisas e o
próximo como a si mesmo. O que isto significa? Significa que o Verbo, que se
fez carne, trouxe uma mensagem real de vida que se traduz em pão e água aos que
têm fome e sede de justiça num mundo de injustiçados. Portanto, o Verbo se fez
gente como a gente, habitou entre nós e trouxe libertação aos povos do mundo,
independente de sua natureza antropológica, isto é, de suas culturas e
tradições.
Nesse
viés, o conhecimento cristão nos dá quatro espécies de liberdade trazidas pelo
Verbo que se fez carne, tornando-se, portanto, gente como a gente: (1)
liberdade natural; (2) liberdade civil; (3) liberdade política; (4) liberdade espiritual-existencial.
Nestes quatro pilares, vemos a expressão do Verbo que se fez carne e habitou
entre nós para operacionalizar o evangelho do reino por um viés acima de tudo
fundamentado nos princípios da justiça de Deus. Vejamos, a seguir, como isso
ocorre.
Em
primeiro lugar, o Verbo se fez carne e revelou a liberdade natural entre os homens no mundo. Esta liberdade acontece
no âmbito da liberdade do homem enquanto homem, do ser enquanto ser, no plano
do autoconhecimento e da autoconsciência para a governabilidade de si mesmo e
do ambiente onde ele habita. Deus criou o homem para viver exatamente essa liberdade
natural no crescimento e na multiplicidade (Gênesis 1.28), e, por via dessa
mesma liberdade natural, governar a terra com suas ações baseadas na
racionalidade. O homem é um animal racional por natureza e por isso mesmo ele
pensa naturalmente os planos da existência em defesa da vida.
Em
segundo lugar, o Verbo se fez carne e se manifestou na liberdade civil de grupos sociais. Esta liberdade é a liberdade do
sujeito enquanto cidadão, na qualidade de “ser” organizado e participativo nas
atividades de transformação social. Aqui o homem é um ser inteligente inserido
no processo cultural-civilizatório e, portanto, efetivamente responsável pelo
desenvolvimento da sociedade no decorrer da história. A liberdade civil
trabalha exata e efetivamente as relações dos cidadãos entre si, reguladas por
normas sociais e levando em conta o indivíduo considerado em suas
circunstâncias particulares dentro da sociedade organizada em forma de grupos
constituídos de seres humanos pensantes.
Em
terceiro lugar, o Verbo se fez carne e trouxe liberdade política que, por sua vez, é a liberdade do indivíduo
enquanto povo responsável pela sua organização social e autogovernabilidade. Aqui
se manifestam as autocracias, ou seja, os modelos de governo humano. Assim, a
liberdade política é uma arte inata inerente à consciência e à inteligência
social do homem para governar a família, a comunidade e os povos. Por este
ponto, o homem desenvolve habilidade basicamente peculiar no trato das relações
humanas, com vista à obtenção dos resultados desejados. Quando a Bíblia diz que
“o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (João 1.14), significa que a Palavra
Viva de Deus se materializou em uma humanidade dinâmica cujas atividades
vislumbram uma hierarquia de forças que se estabelecem no interior das
civilizações da comunidade-mundo. Este é o Deus presente nas numerosas relações
sociais constituídas entre indivíduos e grupos.
Em
quarto lugar, o Verbo se fez carne e revelou a sua glória como liberdade espiritual-existencial para
dar sentido na vida dos que estavam perdidos no mundo. Esta liberdade é aquela
liberdade que nos conecta a Deus por amor a Ele e não por obrigação religiosa.
O reflexo desta liberdade alcança as relações fraternais e antropológicas na
dimensionalidade do conselho divino. O Verbo é “Maravilhoso Conselheiro...”
(Isaías 9.6) e o seu maravilhoso conselho veio ao mundo em forma de evangelho,
sendo vida e luz aos homens que, por sua vez, viram a sua “glória como do unigênito
do Pai” (João 1.3-14) e, portanto, trazendo verdadeira liberdade ao mundo (João
8.32). De fato, a liberdade espiritual-existencial é a liberdade de agir
conforme a vontade do Espírito e não conforme a vontade da carne. Isto significa
que podemos atuar em total concordância com a essência divina, a consciência e
a vontade. Liberdade espiritual, então, é poder fazer tudo e ainda ter a sabedoria
de não ser escravo das próprias vontades. Podemos fazer tudo, exercendo,
inclusive, o poder da liberdade para governar nossas ações em Deus com alegria
e paz no coração. Trata-se de uma autogovernabilidade no direcionamento do caminho
da justiça do bem, nos livrando da escravidão do mal.
Quando
o Senhor Jesus disse que “... o Verbo se fez carne e habitou entre nós...”
(João 1.14), anunciou, aí, uma verdade verbalizada, mas que não era apenas
palavras. Andrés Torres Queiruga, filósofo e teólogo autor de muitas obras
teológicas e pastorais, disse que o Verbo manifestou-se em forma da “glória de
Deus na vida humana num mundo de crucificados”.[2]
O
autor fala da vida humana que sempre esteve assediada pelo mal. E a
responsabilidade de quem segue o Verbo que se fez carne é resolver os problemas
gerados por esse mal. Mal este que se tornou “mal social”, reproduzindo
infinitas mazelas sociais como, por exemplo, fome, pobreza, miséria, violência
e outras. Frente a isso, o Verbo que se fez carne gerou um corpo espiritual
que, agora, está cercado de desafios. Neste ponto, o Verbo é mais que palavras,
uma vez que Ele constituiu um corpo espiritual, a Igreja de Jesus, para se
importar com a situação e a concretude feliz da vida humana.
Há, aqui,
uma teodiceia que vocifera perante a humanidade a mensagem acerca do Deus que é
justo, bom e que tudo pode diante da existência do mal no mundo. Face a isto, o
Verbo que se fez carne nos leva a entender as necessidades daqueles que estão
sendo crucificados por esse mal social que os deixa humilhados perante a vida.
No fundo
da igreja pastoreada por mim, em São Luís do Maranhão, tinha uma famosa casa de
prostituição. Naquela casa, homens e mulheres ganhavam a vida vendendo seu
próprio corpo, perdendo sua própria alma e, portando, sendo humilhados pelo
espírito do mal. Ali pessoas jovens e bonitas ganhavam a vida perdendo a sua alma
para um mundo traiçoeiro e cruel degradador de vidas humanas. A prostituição é
uma atividade aviltante e desonrosa, em que a pessoa se sujeita a expor a
intimidade do seu corpo em troca de certa quantia de dinheiro que não
representa muita coisa. E isso é uma situação humilhante, destruidora da honra
humana. É preciso ser muito fraco da mente para acreditar que a prostituição
não é uma “profissão” maculadora e vergonhosa.
Certo
dia, orando a Deus, senti no coração que a igreja deveria comprar aquela casa. Então, mobilizei a congregação, fizemos uma
campanha arrecadatória e negociamos aquele imóvel por meio milhão de reais, com
alguns pequenos acréscimos. Deus nos ajudou e, assim, conseguimos adquirir
aquele ambiente de degradação da moral humana bem como da sua existencialidade.
Com esforço e dedicação, conseguimos fazer com que um local onde era promovido
culto à prostituição, agora é um ambiente de restauração de vidas humanas degradadas.
Entendo que o Verbo se fez carne para realizar no mundo uma obra libertadora na
mente e no coração de homens e mulheres que estejam dispostos a mudar de vida.
A justiça
se manifestou no Verbo e o Verbo se manifestou em forma de justiça. Isto trouxe
rupturas sociais de grandes complexidades envolvendo a cultura civilizacional dos
seres históricos e gerando respostas para as grandes perguntas da humanidade.
Nem mesmo a teologia explica isso com clarividência. O evangelho é processado
nos quatro pilares da liberdade mencionados acima e até mesmo a igreja não
consegue explicar essa equação existencial para os homens no mundo. Ela
vivencia as boas novas do evangelho mas, infelizmente, não sabe discernir a sua
essência perante os alcançáveis.
Enfim, o
Verbo se fez carne para alcançar a todos num mundo que, agora, se encontra
totalmente secularizado. Esta é uma lógica que coloca a igreja corpo de Cristo
― corpo social em Cristo ― em sintonia com os pressupostos da possibilidade de
um mundo-sem-mal. A igreja não deve pregar um evangelho apenas de palavras, mas
sim um evangelho de ações transformadoras. Seria o caso de se pensar em
realizar um procedimento de atitudes “criaturais”, focadas em criaturas humanas
com suas necessidades. Realizar ações de combate aos males do mundo traduz o
Verbo que se fez carne em resultados concretos que atenuam as necessidades dos
injustiçados.
O povo
que crê em Deus ― e o serve ― precisa se fazer acreditar diante daqueles que já
não têm esperança de um mundo melhor. Os quatro pilares da liberdade (natural,
civil, política e espiritual-existencial) evidenciam o Verbo que se fez carne
por meio de atitudes relevantes da igreja de Jesus Cristo perante um mundo que
é massacrado por todo tipo de injustiça social-humana. Somente desta maneira o
corpo de Cristo pode representar a manifestação da sua glória, com graça e
verdade (João 1.14), no cumprimento da missão do Evangelho da vida (João 1.4).
Vida, aqui, está na dimensão dos quatro pilares da liberdade: natural, civil,
política e espiritual-existencial.
[1]
*Colaboração: Pr. Battista Soarez. Escritor, jornalista, pedagogo, sociólogo,
Assistente Social e professor universitário.
[2]
Andrés Torres Queiruga. In Degislando
N. de Lima & Jacques Trudel (orgs.).
Teologia em Diálogo. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 141.