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quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

ARTIGO: VIVEMOS UM CRISTIANISMO SEM CRISTO? | Pr. Battista Soarez

Vivemos um cristianismo sem Cristo?


Pr. Battista Soarez
(Escritor, jornalista, sociólogo, teólogo e professor)


FOTO: Divulgação/Internet | Imagem ilustrativa


HÁ MAIS OU MENOS uns 20 anos, venho me fazendo esta pergunta: a igreja cristã deixou o Cristo do evangelho do reino de Deus do lado de fora do seu cristianismo?

Agora em 2021, fez 21 anos que publiquei o meu livro Crente, mas consciente: para viver o equilíbrio entre a plenitude da fé e a dignidade humana” (Editora Hosana, SP, 2000). Foi tão impactante, já naquela época, que um certo líder da Assembleia de Deus, bastante conhecido, achou que eu escrevi a obra como uma indireta contra ele. O que jamais procede, haja vista que, embora o tenha publicado no ano 2000, eu o escrevi entre os anos de 1992 e 1993. Mas, até hoje, esse pastor não fala direito comigo. Pois trata-me com desprezo. Outro pastor achou a mesma coisa em relação a si, todavia não deixou de ser meu amigo.

Foi uma experiência bem interessante porque tudo o que eu disse no conteúdo do livro naquela época aconteceu comigo nas instituições cristãs por onde passei posteriormente. Quando, por exemplo, trabalhei na Editora CPAD, no Rio de Janeiro. Quando estive, por sete anos, trabalhando na CEADEMA, no Maranhão. Quando vi o que ocorreu entre o pastor José Wellington Bezerra da Costa e o pastor Samuel Câmara. Quando tomei conhecimento das injustiças que fizeram com o pastor César Moisés Carvalho, na Editora CPAD, mais recentemente. E, enfim, dentre outras coisas, os comportamentos protagonizados entre líderes evangélicos em São Luís do Maranhão.

A propósito, como se tratam os pastores evangélicos? As falsidades, os ciúmes, os orgulhos, as traições, as disputas por cargos, a falta de consulta a Deus quando no ato de tomar decisões. Só para citar alguns exemplos do que ocorre no seio da igreja.

Mas essa inquietação não está só em mim. O teólogo Michael Horton, na sua obra Cristianismo sem Cristo (Editora Cultura Cristã, SP, 2019), denuncia um cristianismo que, na sua pregação, menciona Cristo, mas o deixa de lado, apresentando uma mensagem trivial, sentimental e irrelevante. Um evangelho moralista, de auto-ajuda e bem-estar pessoal. E, pior, um evangelho egoísta e sem relevância social no contexto daquilo que Jesus pregou e ensinou.

Além de Horton, outros teólogos da atualidade têm a mesma preocupação. Mas irei parar por aqui, para poder ir direto ao ponto aonde quero chegar.

Basicamente, seguirei a mesma abordagem de um recente artigo que publiquei, no Leitura Livre, sob o título A igreja evangélica ainda é cristã?”. A priori, percebo que o adormecimento da igreja evangélica prepara um grupo social meramente religioso para um doloroso choque de realidade. O grande desafio e a grande tarefa da igreja cristã será sempre o diálogo com o seu tempo.

A nossa tarefa principal — digo nossa porque estou incluído na ala evangélica, mesmo com uma forma de pensar que ressona como uma crítica que busca levar a igreja a viver, de fato, aquilo que o Senhor Jesus ensinou a partir do Sermão da Montanha — é ajudar na elucidação da verdade, tematizando as grandes questões da atualidade. E me parece que esse foi sempre o plano do evangelho de Jesus Cristo nas grandes épocas da história neotestamentária.

Sem diálogo aberto e conectivo com a sociedade em geral (aberta), o cristianismo é meramente uma seita religiosa. Porque no momento em que a igreja confunde dogma com palavra de Deus, ela deixa de ser agente do reino de Deus, passando a ser sinagoga de “estranhezas” espirituais.

Mas o que é o reino de Deus? O reino de Deus nada mais é senão a vivencialidade e o anúncio da verdade de Cristo. Como ensinaram e praticaram os apóstolos Paulo e João, o evangelho do reino é exatamente aberto para o mundo gentílico. E é no mundo gentílico que o cristianismo se salva de ser uma seita religiosa. É no contexto gentílico que a igreja cristã escapa de ser uma mera religião. Quando o cristianismo perde a capacidade de se comunicar com o mundo, ele simplesmente se torna uma seita.

Assim, o evangelho do reino, sem dogmática, está aberto e pronto para dialogar com todo e qualquer grupo social que precisa de Deus. Com dogmática, ele deixa de ser evangelho do reino. O evangelho do reino de Deus, liberto da religião, está pronto para dialogar com a genialidade e a habilidade de grandes homens e mulheres em qualquer ambiente secular. Porque o evangelho do reino tem o espírito de Cristo. Ao passo que o evangelho religioso não tem o espírito de Cristo.

O evangelho que tem Cristo todo mundo quer ouvir. Qualquer cultura compreende o sentido da sua mensagem. Já o evangelho da religião é chato. Difícil de assimilar. É poluído com tradições impertinentes e rabugices religiosas.

O evangelho do reino, cheio de Deus, consegue dialogar, sobre qualquer assunto, com a sabedoria do mundo cultural, filosófico e científico. Foi Jesus quem deu a ordem: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16.15). Isto quer dizer que o evangelho do reino está aberto à universalidade, a todas as culturas. É o que diz o termo grego original “etnogênesis” (cuja raiz etimológica é éthos) que, traduzido literalmente, significa todas as culturas, civilizações, usos, costumes e hábitos, se referindo às culturas existentes, as de perto, as de longe e as que ainda não existem, mas que virão a existir. Portanto, em Cristo e por Cristo, todas as culturas são alcançadas, porque todas as barreiras de comunicação com as culturas do mundo foram derrubadas. Porque o evangelho não é religião. O evangelho é vida abundante para todo aquele que crê em Jesus Cristo.

A igreja-religião, vazia de Deus, não consegue dialogar com as culturas do mundo e muito menos com as filosofias da sabedoria secular. Por isso ela se tornou um sistema, em que pratica injustiça com seus próprios comunitários, que professam a mesma fé. Por isso a igreja-religião é cheia de pecados. Porque a religião é aprisionada em pecados e nela não há liberdade, como disse Jesus (Mt 23.4).

Todo sistema é uma espécie de religião (mesmo nas sociedades ateístas e políticas), e toda religião é um sistema. E esse é o “mundo” do qual Jesus nos falou sobre o fato de que o mundo nos odeia (Jo 15.18-19). O mundo é o sistema. E o sistema é o mundo. Cristo falou que o mundo nos odeia. E o mundo que nos odeia é o mundo institucionalizado. Inclusive o mundo religioso, institucionalizado pela religião. Veja, na Bíblia e na história, como os religiosos (fariseus, escribas e saduceus) tratavam Jesus e seus discípulos. Veja como a igreja medieval tratava os crentes que, de fato, criam em Deus corretamente. Veja, nos dias de hoje, como são tratados pelos religiosos os cristãos cheios de Deus, que pregam o evangelho sem dogmas. Portanto, o mundo que odeia quem está cheio de Deus é exatamente o mundo-sistema.

Nos dias de Jesus, esse sistema era representado por fariseus, escribas e saduceus. Os saduceus, além de religiosos, pertenciam ao alto escalão social e econômico da sociedade judaica nos dias de Jesus. O escritor Flávio Josefo, que viveu naqueles dias, fala deles. Logo, além de influência religiosa, política e social, os saduceus tinham poder econômico, o que dificultava ainda mais qualquer batalha em relação a eles. E o sistema é isso.

Em síntese, o evangelho da cruz se tornou universal exatamente quando ele, por meio de uma linguagem universal, se abriu em diálogo para o mundo totalmente livre da dogmática judaica. O discurso do apóstolo Paulo para o mundo gentílico — greco-romano — deu-se cada vez mais de maneira ampla, abrindo, portanto, diálogo para com a cultura universal do mundo. Depois o cristianismo esvaziou-se de Deus e levou a igreja medieval a pregar um evangelho sem Cristo, porque não tinha mais o caráter do Cristo do evangelho. Com isso, protagonizou ao mundo um discurso de ódio, uma religiosidade violenta e espiritualmente conturbada. Matou, aos milhares, seus próprios fiéis.

Clemente de Alexandria, na sua obra Stromata, trata da filosofia como uma importante contribuição à reflexão cristã. A igreja de Alexandria era composta por homens sábios e também por cristãos simples. Os cristãos simples recriminaram-lhe perder o seu tempo com a filosofia. Eles queriam somente a fé (despida de conhecimento), sem reflexão, sem discernimento. Obviamente, fé sem conhecimento não tem discernimento. Então, uma fé ignorante passa a conduzi-los e, finalmente, os crentes primitivos tornaram-se vítimas da sua própria fé sem conhecimento.

É o que está acontecendo hoje em dia. Somos uma igreja que não estuda, não quer saber de conhecimento e, portanto, não tem discernimento. É o caso da igreja evangélica de hoje, em nossos dias, na plenitude do século XXI. Os crentes — e até mesmo pastores e líderes que deveriam dar exemplo — vivem uma espiritualidade sem conhecimento, sem reflexão bíblico-teológica e, portanto, sem discernimento. Oram muito. Mas não têm conhecimento para discernir o mundo espiritual. E, assim, são facilmente enganados por espíritos malignos, que se aproveitam das mentes vazias de conhecimento, sem discernimento, para operacionalizar o mal, as injustiças.

Diante de tudo isso, a igreja não tem diálogo justo e honesto para com as culturas do mundo. Não há diálogo justo e honesto entre a verdade da fé e o momento histórico em que vivemos. Se o cristianismo encheu-se de religião e, por isso, se esvaziou de Deus, a igreja evangélica piorou ainda mais as coisas. Os crentes não têm diálogo nem consigo mesmos. Não se respeitam fraternalmente. Esganam-se entre si. Praticamos nossas injustiças entre nós mesmos, irmãos e irmãs no corpo de Cristo. E depois vamos ao templo celebrar nossa fé injusta e abjeta, sem confessar nossos pecados. A boca está cheia de palavras e “louvores”, mas o coração e a mente estão cheios de trevas e malignidades.

A única forma de a igreja manter-se cheia de Cristo é enchendo-se de conhecimento e mantendo uma espiritualidade de relacionamento e comunhão com Deus. Esse cristianismo que aí está, cheio de vício religioso e embriagado por dogmas, sem reflexão teológica, é um cristianismo sem Cristo. Sem relevância sapiencial e sem saúde espiritual.

No entanto, a igreja, no cumprimento de sua missão, precisa do que advém dessa relevância. E somente um profundo conhecimento sapiencial pode proporcionar um adequado encontro e intercâmbio entre o humanismo cristão e as culturas. A igreja só tem três maneiras de trazer Cristo de volta para dentro de si: (1) estudando profundamente a palavra; (2) mantendo uma vida de oração em fidelidade a Deus; (3) praticando atividades de evangelismo e missões. Nessa perspectiva, são importantes uma renovada concepção do método teológico e o sentido da vocação eclesial do teólogo.

O momento atual pede uma reflexão bíblico-teológica que seja um verdadeiro conhecimento de fé — scientia fidei — em Deus, com força educativa e evangelizadora. A teologia tem, agora, mais do que nunca, a grande tarefa de educar a fé dos crentes, contribuindo com lucidez ética a respeito de sua presença e atuação no mundo. Finalmente, para fugir do cristianismo sem Cristo é preciso encher-se do Cristo sem cristianismo.

 

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