COLUNA LEITURA LIVRE
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Por Battista Soarez
(Jornalista, escritor, psicanalista e teólogo)
(Jornalista, escritor, psicanalista e teólogo)
C O N T O
A rainha da Litorânea
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LUCY CAMINHAVA TODAS AS NOITES pelo calçadão da Avenida Litorânea. As pessoas já nem estranhavam mais seu jeito de vestir. Usava saias curtas e tinha a preocupação de delicadamente puxá-las para baixo. Isso a deixava mais sensual ainda. À medida que caminhava, com os quadris balançantes, a saia justa subia de nível e, por vezes, mostrava a cor branca da sua peça íntima. Os rapazes sentados em volta da mesa no bar e restaurante comentam alguma coisa. Depois riem. Lucy percebe, mas não se importa. Não dá a mínima importância para gente idiota que não tem noção da vida. Por isso caminha na contramão da existência.
— Esses caras estão rindo da sua própria idiotice — ela pensou.
Era início da noite de sábado. O mês era outubro e o ano 2020. Fim de tarde e início da noite. Todo mundo só falava da Covid-19. A pandemia afastava as pessoas dos lugares de diversão. Na Litorânea não era diferente mas, mesmo assim, os bares e restaurantes se mantinham movimentados. As nuvens esbranquiçadas indicavam que o crepúsculo assomava sobre a ampla extensão da avenida mais visitada de São Luís.
O escuro da noite se aproximava a cada minuto e a iluminação dos postes tomava conta da claridade, reluzindo nas águas e nas areias da praia. As ondas, empurradas pelo vento, faziam movimentos barulhentos com recuos e avanços. Lucy continua caminhando sobre a calçada. Alguns carros acendem lanternas traseiras em sinal de freios. Seus motoristas baixam o vidro e olham. Olham para o corpo exuberante da moça que continua chamando a atenção pelo seu jeito sensual.
— Biiip — alguns motoristas buzinam.
Lucy olha discretamente apenas com o canto dos olhos.
No céu se alastrava um fulgor estrelado. Na rua inclinada que subia para a avenida dos Holandeses faróis acesos iam e vinham. Na linha do horizonte, obviamente, ambos se distinguiam nitidamente. Por causa desse contraste, tudo parecia envolta numa noite que teria surgido antes da hora astronômica. A escuridão já havia sido substituída totalmente pela iluminação da companhia elétrica.
Os carros continuam passando. Transeuntes caminham sobre a calçada. Uns a passeio. Outros fazendo exercícios físicos para prevenir doenças cardiovasculares. Em algum lugar, nas águas do Atlântico, pescadores em alto mar olham para o céu e pensam em continuar a pescaria mas, ao baixar os olhos, decidem concluir algumas atividades e voltarem para casa. Os limites longínquos entre terra, mar e o firmamento pareciam separar não só as três naturezas díspares, mas, também, incalculáveis quilômetros. Essa distância se assemelha à realidade entre os pensamentos de Lucy e os risos maliciosos dos rapazes, sentados à mesa do bar, bebendo cerveja.
— Boa noite — um transeunte, fazendo caminhada, passa por Lucy e a saúda gentilmente.
— Boa noite — ela responde.
A superfície das águas, por seus movimentos, mostravam que a maré logo entraria em enchente. Com isso, o vento sopraria mais forte e a noite se tornaria mais fria. A lua e as estrelas brilhavam, enquanto a noite, mais tarde, suscitaria emoção e temor. O dia seguinte, talvez, seria melancólico ou agitado.
— Olá! — saúda um rapaz ao passar por Lucy.
— Olá! — ela responde, esboçando um leve sorriso e, pela primeira vez, naquela noite, se interessa em conversar com alguém interessante.
O rapaz senta à mesa do restaurante ao lado, enquanto Lucy pára de caminhar e finge que está falando ao celular. Os minutos passam rapidamente. Nos bares aumentam o fluxo de pessoas que se reúnem para beber e conversar. Lucy continua parada. O rapaz olha fixamente para a moça e decide levantar da cadeira e vai até ela.
— Oi — diz ele para a moça. — Tudo bem?
— Oi. Tudo bem. E com você? — Lucy ri outra vez.
— Aceita conversar um pouco?
— Sim, Pode ser.
Os dois caminham em direção à mesa e sentam de frente um para o outro. Lucy fixa nos olhos do rapaz e logo percebe um interesse lúcido por ela. Os dois desconversam, externalizando pensamentos soltos e tímidos. Pelo menos inicialmente. A dimensão extraordinária do tempo, no lume da avenida, iniciava aquele ponto exato de transição que mergulhava na obscuridade da noite para uma sequência de futuro que os dois protagonizariam a partir daquele momento. Ninguém poderia imaginar que aquele encontro seria pragmático e duradouro. Quanto mais se enxergava a dimensão do tempo, melhor Lucy e o rapaz sentiam aquela magia, estando seu completo efeito e explicação naquela hora e nas horas seguintes até a alvorada. Naquele momento, e só naquele momento, a Litorânea se revelava em sua plenitude.
— Como se chama? — Lucy perguntou.
— Adson — respondeu ele, ajeitando o corpo na cadeira e descansando os braços sobre a mesa. — E você? Qual o seu nome?
— Lucy.
— É um prazer, Lucy.
— O prazer é nosso.
— Obrigado.
— Mora aqui mesmo em São Luís? — Quis saber a moça.
— Sim. Moro em São Luís. Nasci aqui mesmo na Ilha.
O local apresentava grande afinidade com a noite. Quando ela chegou, percebeu a tendência efetiva do clima e da paisagem formada pelos pés de coco da praia. A extensão da Litorânea parecia elevar-se indo ao encontro da realidade noturna com franca empatia. As luzes disseminavam a iluminação e afastavam a escuridão assim que o céu a lançava sobre a avenida. Assim, luz e trevas seguiam destinos diferentes.
— Fale-me um pouco sobre você — disse Adson.
Lucy ficou em silêncio por um momento. Os dois se entreolham. O vento soprou um pouco mais forte e as folhagens dos pés de coco sibilaram mais forte também. Um casal ao lado se beija avidamente. Um garçom se aproxima com um cardápio na mão.
— Boa noite — disse o garçom. — Desejam alguma coisa?
— Sim — respondeu Adson, recebendo o cardápio.
— Fiquem à vontade. Quando escolherem, é só chamar.
O garçom se afasta e os dois começam a escolher o que pedir. Combinaram camarão frito a óleo e alho. Acenaram para o funcionário e solicitam o prato.
— Pedi que me falasse sobre você — lembrou Adson. — Você não disse nada.
— Cara, minha vida é meio complicada.
— Como assim?
— Vim do interior da Baixada. Sou de Maracaçumé. Vim para a capital em busca de oportunidade.
— Sei. — Adson cruzou as pernas, olhando fixamente nos olhos de Lucy.
— Ao chegar aqui, conheci umas amigas… — Lucy ficou um tempo em silêncio. — Elas trabalham à noite nessa vida, sabe?
— Nessa... nessa vida…? Qual vida? — Instigou Adson, desviando o olhar para os carros que passavam nos dois sentidos da avenida.
— Elas saíam com uns caras que as pagavam um bom dinheiro por isso. Passaram a me convidar. E eu sempre rejeitava. Mas num certo dia, me apresentaram um sujeito bacana. Fiz o serviço com ele e ele me deu uma boa grana. Gostei do dinheiro e, dali por diante, passei a praticar esse tipo de negócio. Hoje ganho o suficiente para levar uma vida razoavelmente confortável.
— Cara, mas isso é prostituição.
— Eu sei, mas...
O garçom chega com o pedido. Arruma pratos e talheres sobre a mesa e pergunta se querem mais alguma coisa.
— Dois sucos, por favor — diz Adson. — Quero de laranja.
— O meu pode ser uma limonada suíça? — Pergunta Lucy.
— Sim, claro — responde o garçom, virando-se para ir em busca do novo pedido.
Naquele sábado, apesar da pandemia, a Litorânea estava super-movimentada. Era um ambiente que trazia à memória de Lucy muitas lembranças. As pessoas amam estar ali. Os tempos em que a grandeza frugal de um bosque, do mar ou de uma montanha serão os únicos espetáculos da natureza em total harmonia com o humor dos homens mais predispostos à meditação. Ao turista vulgar, por fim, lugares como a Litorânea podem tornar-se aprazíveis como são, agora, os jardins de plantas de casas e casarões do Renascença, ou até mesmo as dunas de areias dos Lençóis maranhenses, compreendendo Barreirinhas, Santo Amaro e Tutóia.
O garçom chega com o suco de laranja e a limonada suíça.
— Bom apetite — diz ele.
— Obrigado — agradece Adson.
— Obrigada — Lucy também agradece.
O mais rigoroso turista se sentiria à vontade para deambular pela Litorânea. Permitir a si mesmo influência como essa seria totalmente legítimo. A beleza, suavizada a esse ponto, poderia no mínimo ser oferecida a qualquer um. Apenas nos dias mais luzidios do verão, a Litorânea chegava ao nível da alegria. Em geral, ela atingia a intensidade mais pelo aspecto importante que pelo lado magnífico. E esse tipo de intensidade era frequentemente atingido com as sombras, ventos e outros fenômenos. A Litorânea, então, despertava para a reciprocidade. O vento frio da noite era o seu amante e o barulho das águas o seu companheiro.
— Deseja sair dessa vida? — Adson pergunta.
Lucy pensa um pouco. Lá dentro do restaurante toca a música I’m Still Standing, seguida de Sacrifice, de Elton John. A essa altura, o clima está mais frio. Naquele momento, a Litorânea era um lugar perfeitamente conciliado com a natureza humana. "You could never know what it's like / Your blood like winter, freezes just like...". "Você nunca poderia saber como é / Seu sangue, como o inverno, congela como gelo", diz a letra da canção.
Lucy olha mais uma vez nos olhos de Adson. Mastiga o saboroso alimento e engole um pouco da sua limonada. "And there's a cold, lonely light that shines from you...". "E há uma luz fria e solitária que brilha em você", a música continua. A moça engole mais um pouco do líquido e coloca o copo de volta na mesa.
— Com certeza — respondeu ela. — Acho que toda mulher como eu, com 22 anos de idade, busca oportunidades de mudar de vida.
Adson olha no relógio. Passa de meia-noite e São Luís inteira ainda está acordada. Termina a música I’m Still Standing (Eu ainda estou de pé) e começa a tocar Sacrifice (Sacrifício). Aquele momento mergulha na madrugada, enquanto o barulho das águas vai se tornando mais nítido. Adson e Lucy percebem que a música toca seus corações à média que a conversa entre os dois se prolonga e gotas de orvalho começam a cair sobre seus cabelos. O rapaz segura a mão de Lucy e ela sente um arrepio sentimental que a deixa lânguida e deslumbrada.
It's two hearts living (São dois corações vivendo) / In two separate worlds (Em dois mundos diferentes) / But it's no sacrifice (Mas não é um sacrifício) / No sacrifice (Não é sacrifício) / It's no sacrifice at all (Não é nenhum sacrifício), diz a letra da canção. E, então, aquela noite se torna curta demais para os dois.
Três anos depois…
— Oi, Lucy! — Uma amiga se aproxima.
— Oi, Franci! Tudo bem?
— Tudo. Quanto tempo!
As duas se abraçam demoradamente. Conversam sobre algumas coisas do passado. Dos momentos de saída à noite.
— E esse bebê? É seu?
— Sim. É meu.
— Se descuidou e não usou preservativo…
— Não, amiga. É totalmente desejado. Meu marido e eu resolvemos ter um filho.
— Marido? Você se casou?
— Sim… casei. Adson, vem aqui. — Lucy chama o marido. — Deixa eu te apresentar uma amiga.
Adson se aproxima. Cumprimenta Franci. Os três conversam demoradamente.
— E hoje, você faz o que, Lucy? — Perguntou Franci.
— Adson e eu montamos uma empresa no ramo de peças de moto. Estamos muito bem, amiga. Tive um verdadeiro encontro com o Senhor Jesus Cristo.
— Você virou crente? — Franci perguntou, com ar de surpresa.
— Sim. Adson e eu somos crentes. Graças a Deus — respondeu Lucy. — Foi a decisão mais sábia da minha vida.
O bebê está brincando no parquinho da Litorânea, onde as duas amigas se encontraram. Adson observa cuidadosamente o garotinho para evitar algum acidente.
F I M
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