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sábado, 16 de novembro de 2024

COLUNA LEITURA LIVRE | por Battista Soarez

COLUNA LEITURA LIVRE
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Por Battista Soarez 
(Jornalista, escritor, psicanalista e teólogo)

C O N T O
A rainha da Litorânea

Imagem meramente ilustrativa | Foto: Divulgação

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LUCY CAMINHAVA TODAS AS NOITES pelo calçadão da Avenida Litorânea. As pessoas já nem estranhavam mais seu jeito de vestir. Usava saias curtas e tinha a preocupação de delicadamente puxá-las para baixo. Isso a deixava mais sensual ainda. À medida que caminhava, com os quadris balançantes, a saia justa subia de nível e, por vezes, mostrava a cor branca da sua peça íntima. Os rapazes sentados em volta da mesa no bar e restaurante comentam alguma coisa. Depois riem. Lucy percebe, mas não se importa. Não dá a mínima importância para gente idiota que não tem noção da vida. Por isso caminha na contramão da existência.

P U B L I C I D A D E

Esses caras estão rindo da sua própria idiotice — ela pensou.

Era início da noite de sábado. O mês era outubro e o ano 2020. Fim de tarde e início da noite. Todo mundo só falava da Covid-19. A pandemia afastava as pessoas dos lugares de diversão. Na Litorânea não era diferente mas, mesmo assim, os bares e restaurantes se mantinham movimentados. As nuvens esbranquiçadas indicavam que o crepúsculo assomava sobre a ampla extensão da avenida mais visitada de São Luís.

Foto: Divulgação 

O escuro da noite se aproximava a cada minuto e a iluminação dos postes tomava conta da claridade, reluzindo nas águas e nas areias da praia. As ondas, empurradas pelo vento, faziam movimentos barulhentos com recuos e avanços. Lucy continua caminhando sobre a calçada. Alguns carros acendem lanternas traseiras em sinal de freios. Seus motoristas baixam o vidro e olham. Olham para o corpo exuberante da moça que continua chamando a atenção pelo seu jeito sensual.

Biiip — alguns motoristas buzinam.

Lucy olha discretamente apenas com o canto dos olhos.

No céu se alastrava um fulgor estrelado. Na rua inclinada que subia para a avenida dos Holandeses faróis acesos iam e vinham. Na linha do horizonte, obviamente, ambos se distinguiam nitidamente. Por causa desse contraste, tudo parecia envolta numa noite que teria surgido antes da hora astronômica. A escuridão já havia sido substituída totalmente pela iluminação da companhia elétrica.

P U B L I C I D A D E

Os carros continuam passando. Transeuntes caminham sobre a calçada. Uns a passeio. Outros fazendo exercícios físicos para prevenir doenças cardiovasculares. Em algum lugar, nas águas do Atlântico, pescadores em alto mar olham para o céu e pensam em continuar a pescaria mas, ao baixar os olhos, decidem concluir algumas atividades e voltarem para casa. Os limites longínquos entre terra, mar e o firmamento pareciam separar não só as três naturezas díspares, mas, também, incalculáveis quilômetros. Essa distância se assemelha à realidade entre os pensamentos de Lucy e os risos maliciosos dos rapazes, sentados à mesa do bar, bebendo cerveja.

Boa noite — um transeunte, fazendo caminhada, passa por Lucy e a saúda gentilmente.

Boa noite — ela responde.

A superfície das águas, por seus movimentos, mostravam que a maré logo entraria em enchente. Com isso, o vento sopraria mais forte e a noite se tornaria mais fria. A lua e as estrelas brilhavam, enquanto a noite, mais tarde, suscitaria emoção e temor. O dia seguinte, talvez, seria melancólico ou agitado.

Olá! — saúda um rapaz ao passar por Lucy.

Olá! — ela responde, esboçando um leve sorriso e, pela primeira vez, naquela noite, se interessa em conversar com alguém interessante.

P U B L I C I D A D E

O rapaz senta à mesa do restaurante ao lado, enquanto Lucy pára de caminhar e finge que está falando ao celular. Os minutos passam rapidamente. Nos bares aumentam o fluxo de pessoas que se reúnem para beber e conversar. Lucy continua parada. O rapaz olha fixamente para a moça e decide levantar da cadeira e vai até ela.

Oi — diz ele para a moça. — Tudo bem?

Oi. Tudo bem. E com você? — Lucy ri outra vez.

Aceita conversar um pouco?

Sim, Pode ser.

Os dois caminham em direção à mesa e sentam de frente um para o outro. Lucy fixa nos olhos do rapaz e logo percebe um interesse lúcido por ela. Os dois desconversam, externalizando pensamentos soltos e tímidos. Pelo menos inicialmente. A dimensão extraordinária do tempo, no lume da avenida, iniciava aquele ponto exato de transição que mergulhava na obscuridade da noite para uma sequência de futuro que os dois protagonizariam a partir daquele momento. Ninguém poderia imaginar que aquele encontro seria pragmático e duradouro. Quanto mais se enxergava a dimensão do tempo, melhor Lucy e o rapaz sentiam aquela magia, estando seu completo efeito e explicação naquela hora e nas horas seguintes até a alvorada. Naquele momento, e só naquele momento, a Litorânea se revelava em sua plenitude.

P U B L I C I D A D E

Como se chama? — Lucy perguntou.

Adson — respondeu ele, ajeitando o corpo na cadeira e descansando os braços sobre a mesa. E você? Qual o seu nome?

Lucy.

É um prazer, Lucy.

O prazer é nosso.

Obrigado.

Mora aqui mesmo em São Luís? — Quis saber a moça.

Sim. Moro em São Luís. Nasci aqui mesmo na Ilha.

P U B L I C I D A D E

O local apresentava grande afinidade com a noite. Quando ela chegou, percebeu a tendência efetiva do clima e da paisagem formada pelos pés de coco da praia. A extensão da Litorânea parecia elevar-se indo ao encontro da realidade noturna com franca empatia. As luzes disseminavam a iluminação e afastavam a escuridão assim que o céu a lançava sobre a avenida. Assim, luz e trevas seguiam destinos diferentes.

Fale-me um pouco sobre você — disse Adson.

Lucy ficou em silêncio por um momento. Os dois se entreolham. O vento soprou um pouco mais forte e as folhagens dos pés de coco sibilaram mais forte também. Um casal ao lado se beija avidamente. Um garçom se aproxima com um cardápio na mão.

Boa noite — disse o garçom. — Desejam alguma coisa?

Sim — respondeu Adson, recebendo o cardápio.

Fiquem à vontade. Quando escolherem, é só chamar.

O garçom se afasta e os dois começam a escolher o que pedir. Combinaram camarão frito a óleo e alho. Acenaram para o funcionário e solicitam o prato.

Pedi que me falasse sobre você — lembrou Adson. — Você não disse nada.

Cara, minha vida é meio complicada.

Como assim?

Vim do interior da Baixada. Sou de Maracaçumé. Vim para a capital em busca de oportunidade.

Sei. Adson cruzou as pernas, olhando fixamente nos olhos de Lucy.

Ao chegar aqui, conheci umas amigas… Lucy ficou um tempo em silêncio. Elas trabalham à noite nessa vida, sabe?

Nessa... nessa vida…? Qual vida? Instigou Adson, desviando o olhar para os carros que passavam nos dois sentidos da avenida.

Elas saíam com uns caras que as pagavam um bom dinheiro por isso. Passaram a me convidar. E eu sempre rejeitava. Mas num certo dia, me apresentaram um sujeito bacana. Fiz o serviço com ele e ele me deu uma boa grana. Gostei do dinheiro e, dali por diante, passei a praticar esse tipo de negócio. Hoje ganho o suficiente para levar uma vida razoavelmente confortável.

Cara, mas isso é prostituição.

Eu sei, mas...

O garçom chega com o pedido. Arruma pratos e talheres sobre a mesa e pergunta se querem mais alguma coisa.

Dois sucos, por favor diz Adson. Quero de laranja.

O meu pode ser uma limonada suíça? Pergunta Lucy.

Sim, claro responde o garçom, virando-se para ir em busca do novo pedido.

P U B L I C I D A D E

Naquele sábado, apesar da pandemia, a Litorânea estava super-movimentada. Era um ambiente que trazia à memória de Lucy muitas lembranças. As pessoas amam estar ali. Os tempos em que a grandeza frugal de um bosque, do mar ou de uma montanha serão os únicos espetáculos da natureza em total harmonia com o humor dos homens mais predispostos à meditação. Ao turista vulgar, por fim, lugares como a Litorânea podem tornar-se aprazíveis como são, agora, os jardins de plantas de casas e casarões do Renascença, ou até mesmo as dunas de areias dos Lençóis maranhenses, compreendendo Barreirinhas, Santo Amaro e Tutóia.

O garçom chega com o suco de laranja e a limonada suíça.

Bom apetite — diz ele.

Obrigado agradece Adson.

Obrigada Lucy também agradece.

O mais rigoroso turista se sentiria à vontade para deambular pela Litorânea. Permitir a si mesmo influência como essa seria totalmente legítimo. A beleza, suavizada a esse ponto, poderia no mínimo ser oferecida a qualquer um. Apenas nos dias mais luzidios do verão, a Litorânea chegava ao nível da alegria. Em geral, ela atingia a intensidade mais pelo aspecto importante que pelo lado magnífico. E esse tipo de intensidade era frequentemente atingido com as sombras, ventos e outros fenômenos. A Litorânea, então, despertava para a reciprocidade. O vento frio da noite era o seu amante e o barulho das águas o seu companheiro.

Deseja sair dessa vida? Adson pergunta.

Lucy pensa um pouco. Lá dentro do restaurante toca a música I’m Still Standing, seguida de Sacrifice, de Elton John. A essa altura, o clima está mais frio. Naquele momento, a Litorânea era um lugar perfeitamente conciliado com a natureza humana. "You could never know what it's like / Your blood like winter, freezes just like...". "Você nunca poderia saber como é / Seu sangue, como o inverno, congela como gelo", diz a letra da canção.

Lucy olha mais uma vez nos olhos de Adson. Mastiga o saboroso alimento e engole um pouco da sua limonada. "And there's a cold, lonely light that shines from you...". "E há uma luz fria e solitária que brilha em você", a música continua. A moça engole mais um pouco do líquido e coloca o copo de volta na mesa.

Com certeza respondeu ela. Acho que toda mulher como eu, com 22 anos de idade, busca oportunidades de mudar de vida.

Adson olha no relógio. Passa de meia-noite e São Luís inteira ainda está acordada. Termina a música I’m Still Standing (Eu ainda estou de pé) e começa a tocar Sacrifice (Sacrifício). Aquele momento mergulha na madrugada, enquanto o barulho das águas vai se tornando mais nítido. Adson e Lucy percebem que a música toca seus corações à média que a conversa entre os dois se prolonga e gotas de orvalho começam a cair sobre seus cabelos. O rapaz segura a mão de Lucy e ela sente um arrepio sentimental que a deixa lânguida e deslumbrada.

It's two hearts living (São dois corações vivendo) / In two separate worlds (Em dois mundos diferentes) / But it's no sacrifice (Mas não é um sacrifício) / No sacrifice (Não é sacrifício) / It's no sacrifice at all (Não é nenhum sacrifício), diz a letra da canção. E, então, aquela noite se torna curta demais para os dois.

P U B L I C I D A D E

Três anos depois…

Oi, Lucy! Uma amiga se aproxima.

Oi, Franci! Tudo bem?

Tudo. Quanto tempo!

As duas se abraçam demoradamente. Conversam sobre algumas coisas do passado. Dos momentos de saída à noite.

E esse bebê? É seu?

Sim. É meu.

Se descuidou e não usou preservativo…

Não, amiga. É totalmente desejado. Meu marido e eu resolvemos ter um filho.

Marido? Você se casou?

Sim… casei. Adson, vem aqui.  Lucy chama o marido. — Deixa eu te apresentar uma amiga.

Adson se aproxima. Cumprimenta Franci. Os três conversam demoradamente.

E hoje, você faz o que, Lucy? Perguntou Franci.

Adson e eu montamos uma empresa no ramo de peças de moto. Estamos muito bem, amiga. Tive um verdadeiro encontro com o Senhor Jesus Cristo.

Você virou crente? Franci perguntou, com ar de surpresa.

Sim. Adson e eu somos crentes. Graças a Deus respondeu Lucy. Foi a decisão mais sábia da minha vida.

O bebê está brincando no parquinho da Litorânea, onde as duas amigas se encontraram. Adson observa cuidadosamente o garotinho para evitar algum acidente.

F I M 
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P U B L I C I D A D E


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