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domingo, 29 de maio de 2022

Entrevista: PR. FRANCISCO TAVARES | Missões com "barreiras"

ENTREVISTA: PR. FRANCISCO TAVARES

Missão sem “fronteiras”. Mas com muitas “barreiras”
O pastor missionário Francisco Tavares, da AD no Maranhão, fala da dificuldade de evangelizar sem salário e diz que a igreja evangélica cruzou os braços e fechou os olhos para a obra missionária.


Por Battista Soarez
(De São Luís - MA)

Pr. FranciscoTavares em São Luís, onde mora com a esposa | Foto: Battista Soarez

“EU SINTO MUITA TRISTEZA quando vejo a forma como estão tratando a obra missionária atualmente. Uma verdadeira injustiça”, diz o pastor Francisco Travares, 59 anos, membro da Igreja Evangélica Assembleia de Deus no Maranhão. Tavares é casado com a missionária Eliene de Jesus Mendes Tavares, filha de pastor, e, como muitas esposas de pastores, se mostra bastante entristecida quando o assunto é o ambiente cristão. O casal tem dois filhos. Um homem e uma mulher. E dois netos.

O pastor-missionário é evangélico desde criança. Cresceu sob as orientações doutrinárias da Bíblia e cedo ingressou numa carreira profissional promissora. Ainda muito jovem, foi executivo de três multinacionais como Ambev, Alumar e Vale do Rio Doce. Nos anos 1990, recebeu um convite da Assembleia de Deus em São Luís para ingressar no ministério pastoral, o que o levou a abrir mão de um ganho de quase 50 salários mínimos, à época, para ser pastor. Formado em química, sociologia, filosofia e pedagogia, resolveu também se capacitar na área teológica com o intuito de servir a igreja evangélica. Bacharelou-se em teologia, fez mestrado em antropologia missionária e ainda fez dois doutorados.

Depois de tudo isso, teve a primeira decepção: o acordo da igreja não foi cumprido. Com isso, vieram as dificuldades e Tavares teve de se virar dando aulas em instituições de ensino superior para sustentar a família. Ao ingressar na CEADEMA (Convenção Estadual da Assembleia de Deus no Maranhão), nunca recebeu uma igreja para pastorear. E, como pastor, nunca teve salário. Foi aí que ele resolveu ser missionário em tempo integral, recebendo doações de voluntários para sobreviver. Pastor Tavares tem viajado por regiões do Brasil em busca de conhecimento e capacitação para servir a obra de Deus. Mas percebe que a idade está passando rapidamente e do muito que aprendeu pouco tem sido aproveitado ao longo do seu sofrido ministério.

Em entrevista ao Leitura Livre, Tavares falou em tom firme, deixando claro que conhecimento ele tem com fartura para administrar qualquer situação ministerial em matéria de igreja. Nesta entrevista, fica claro que a liderança da igreja evangélica não está sabendo aproveitar seus soldados, em detrimento de políticas eclesiásticas míopes e assassinas de dons e ministérios em homens que Deus chamou e capacitou para fazer a sua obra. Vamos à entrevista. Longa, mas que vale a pena ler para conhecer a realidade do campo missionário:

LEITURA LIVREO senhor é visto como um dos pastores da CEADEMA (Convenção Estadual da Assembleia de Deus no Maranhão) mais bem preparados e dedicados na obra de Deus na sua convenção. Para o senhor, hoje, que se preparou intelectual e teologicamente a vida inteira para servir a igreja, o que significa fazer missões numa denominação como a Assembleia de Deus que, no Brasil, não tem visão missionária?

PR. FRANCISCO TAVARES — É uma pergunta um tanto difícil de ser respondida. Porque, quando nós olhamos para a estrutura denominacional de uma igreja do porte das Assembleias de Deus no estado do Maranhão e comparamos essa estrutura enorme com a sua incapacidade de ver e enxergar os campos brancos, a gente fica até constrangida de fazer algum tipo de avaliação ou crítica, ainda que seja construtiva. Porque a disparidade, a discrepância entre a estrutura de natureza econômica, financeira, física, prédio, veículo etc. e a necessidade que existe no campo, é tão grande que é como se comparássemos o padrão de vida de quem mora na África do Norte com quem mora na Suécia, por exemplo. Porém, respondendo de uma forma mais objetiva à sua pergunta, fazer missões nas condições em que vivo hoje e numa igreja sem nenhuma visão missionária, significa três coisas.

Pr. Tavares em um assentamento em Humberto de Campos | Foto: Divulgação

L. LIVRE — Quais?

PR. TAVARES — A primeira é renunciar o básico como, por exemplo, almoçar e jantar. Renunciar andar de carro particular ou de coletivo e ter que andar a pé, caminhar por até 200 quilômetros como eu tenho feito ao longo do meu ministério missionário. A segunda, significa se tornar antipático, inimigo, como se a gente fosse um comunista, esquerdista, sanguinário, daqueles que são considerados como se fossem stalinistas. Assim são vistos aqueles que têm visão missionária dentro da nossa denominação. E a terceira, significa ter de chorar, orar e derramar muitas lágrimas e dividir estas lágrimas com milhares de pessoas carentes e necessitadas somente no Maranhão.

L. LIVRE — Tudo isso?

PR. TAVARES — Sim. Imagine só. Quatro anos atrás, eu, juntamente com a SEPAL (Serviço de Evangelização Para a América Latina), fizemos uma pesquisa de natureza científica e constatamos, e posso provar, 35 mil povoados no Maranhão sem a presença do evangelho de Jesus. Mais especificamente por parte de qualquer igreja da Assembleia de Deus. Conheço vários municípios no sertão onde já foram levantadas várias igrejas da Assembleia de Deus e, por falta de manutenção, caíram as paredes literalmente. Porque, pura e simplesmente, não existe visão de plantio de igreja. Igreja não é como uma bananeira que a gente planta e ela cresce rápido. Uma igreja pode levar até trinta anos para crescer. Eu conheço uma província na Suíça onde dois missionários americanos passaram trinta anos e não ganharam uma alma para Jesus. Um dia tiveram que se aposentar. O segundo casal que chegou lá conversou comigo e o Reinaldo Lindório. E eu, então, perguntei para o casal: “o casal de missionários que acabou de se aposentar passou trinta anos aqui e não ganhou uma alma para Jesus. E vocês?”. Eles olharam para nós e responderam com toda força: “nós somos vocacionados. E vamos continuar pregando”. E, aí, eu lembrei de Jeremias quando tiraram ele de dentro do poço de lama e o sacudiram e perguntaram: “e agora, Jeremias?” Ele olhou nos olhos do seu algoz e bradou: “Assim diz o Senhor..”. E continuou a pregar.

Pr. Tavares levando ombro amigo a região pobre de Primeira Cruz | Foto: Divulgação.

L. LIVRENa sua visão, o que a igreja teria de fazer para que a obra missionária no Brasil e no mundo fosse mais efetivamente satisfatória? No sentido de que os missionários não passassem dificuldade no campo como o senhor vem passando ao longo do seu ministério?

PR. TAVARES — Precisamos ser mais específicos com relação a essa questão. Porque quando o senhor fala “no mundo”, o mundo, hoje, é ocidentalizado. E uma pequena parte que não é ocidentalizada, é radical. É intolerante do ponto de vista religioso. Então os países ocidentalizados, majoritariamente capitalistas, movidos por um processo de expansão universalista chamado globalização (que envolve sociedade, economia, política e cultura em nível mundial), acabam achatando todas as culturas. Inclusive a cultura religiosa. Nisso a igreja é achatada pela globalização. Nisso tem acontecido um movimento inverso, de fora para dentro da igreja. Jesus disse que a igreja tem que ser “sal” e “luz” do mundo e no mundo. Para que ela tempere e ilumine. Sal não é para salgar. É para temperar, ou seja, para dar aquele equilíbrio no sabor e ficar de bom gosto. E a luz não é para queimar ou encandear, mas para alumiar, tirar da escuridão. Só que, infelizmente, desde o pós-guerra, o cristianismo mergulhou, a partir dos Estados Unidos, numa crise sem precedente em que esse movimento passou a acontecer de forma contrária.

L. LIVRE — Como assim?

PR. TAVARES — Em vez de a igreja influenciar de dentro para fora, ela embarcou não foi numa canoa, mas num transatlântico sem leme, totalmente desgovernado, e desceu correnteza abaixo sem saber aonde vai ancorar. Hoje ela está mergulhada numa cultura capitalista, materialista, ocidentalizada, selvagem em que prevalece a lei do mais forte. Essa cultura veio para dentro das igrejas.

Pr. Tavares no sertão do Piauí, onde tem o menor IDH da América do Sul | Foto: Divulgação

L. LIVRE — O senhor pode explicar melhor isso?

PR. TAVARES — Existiu um culturalista, sociólogo, considerado um dos últimos pensadores de mentes mais férteis do século passado, que foi Zygmunt Bauman. Esse homem estudou profundamente a cultura urbana. Inclusive um dos livros dele chama-se Cultura mundo. Ele publicou quase uma centena de livros. E ele vai falar sobre uma sociedade líquida e modernidade líquida em que os relacionamentos são extremamente volúveis. Fazem-se e se desfazem com a mesma facilidade. Por isso a sociedade é líquida. Outra marca dessa sociedade líquida é que a cultura ocidentalizada, que entrou na igreja e aí essa igreja, em vez dela influenciar, ela passou a fazer parte desse sistema cruel e perverso. E aí a igreja institucional é extremamente perversa, desigual, desumana, arbitrária e até violenta. Prega e vive uma espiritualidade violenta. E eu vou lhe dar aqui um exemplo. Se você fosse hoje um governador, esquerda ou direita, não importa, e nunca foi crente. E eu sou crente há cinquenta anos. Mas se o presidente da minha denominação tivesse que escolher por cortar a cabeça entre mim que sou crente e a do governador que não é crente, ele ia optar pela minha. Ele prefere perseguir e matar o seu próprio irmão na fé. Por que?

L. LIVRE — Sim. E por que?

PR. TAVARES — Porque a igreja institucional foi engolida por esse sistema. E aí eu uso as palavras de Bauman que diz: “nesse sistema só vale quem consome e quem produz”. E para piorar, o ser humano vale menos que a banda de um frango. Porque se você for na cidade, você não vai ver um frango no meio da rua. Mesmo que seja uma banda. Mas você vai ver seres humanos na rua, jogados nas calçadas, mendigando, dormindo ao relento, pedindo esmolas e ninguém ligando para eles. Sabe por que? Porque uma banda de frango vale 20 reais e um ser humano não vale nada, inclusive para muitos crentes. E a igreja foi engolfada nesse pântano de materialismo injusto e impiedoso o qual Jesus rebateu o tempo todo. Enfim, a igreja institucional está operando o tempo todo contra o reino de Deus. Por isso ela está fazendo um papel inverso ao evangelho genuíno. Então, a igreja teria que parar e rever tudo outra vez, inclusive no que se refere à sua administração, justiça e unidade no corpo de Cristo. Alcançar o mundo para Cristo passa por essa reengenharia.

Pr. Tavares recolhendo donativos pra obra missionária | Foto: Divulgação

L. LIVRE
Com isso o senhor está dizendo que a igreja, mergulhada nessa sociedade líquida, está praticando um evangelho de injustiça, totalmente contrário ao evangelho da justiça, proposto, pregado, ensinado e vivido por Jesus no seu ministério terreno?

PR. TAVARES — Sim. Porém, quando nós falamos de igreja, que fique bem claro que me refiro à igreja institucional. Não à igreja corpo-espiritual, santa e fiel. A igreja pode ser entendida como instituição e como corpo de Cristo. Mas até a igreja enquanto corpo de Cristo também pode ser contaminada. Porque Jesus disse que o trigo cresce junto com o joio. A diferença é que a igreja corpo de Cristo tem o Espírito de Deus. Enquanto que a igreja institucional não tem o Espírito. Ela é como aquele esqueleto da visão de Ezequiel no capítulo 37. Estamos construindo templos luxuosos, mas vazios de Deus. Estamos construindo uma cultura de fossilização. Os líderes religiosos estão gastando milhões e milhões em dinheiro construindo templos pomposos, faustos, para deixarem para o Anticristo usar. Enquanto isso, estão negando o pão aos missionários que estão no campo sem comida, bebendo água barrenta, se enchendo de doenças e sem sequer uma bicicleta para andar.

Pr. Tavares levando apoio a missionários por meio do Ombro Amigo | Foto: Divulgação

L. LIVRE — Essa é a realidade que o senhor tem presenciado?

PR. TAVARES — Com certeza. Nas minhas andanças pelo sertão, tenho visto missionários morrendo de fome, comendo animais silvestres, com seus filhos sem estudar e fazendo sandálias de garrafa pet porque não recebem ajuda das suas igrejas para trabalhar na obra. Infelizmente, a igreja institucional se tornou tão perversa que vou revelar aqui um dado estatístico recente do Conselho Mundial de Missões da Inglaterra. O órgão diz que 87,88% dos recursos que sustentam aqueles que sofrem na obra missionária vêm dos aposentados e daqueles que vendem cheiro-verde e carvão nas feiras. Isso é uma vergonha muito grande. Isso mostra que a igreja institucional não está fazendo nada por missões. Fechou os olhos e cruzou os braços para missões. Está de mão encolhida. E praticando suas injustiças eclesiais. Até o ano 300 d.C., a igreja era perseguida. A partir daí, ela passou a ser perseguidora. Com o andamento da história, ela se constantinizou. E chegou a um momento em que de uma vez só ela matou mais de seiscentos mil mulçumanos. Tem pastor por aí ganhando mais de 400 mil reais de salário por mês. Sabe quem está pagando esse salário? Vendedores de bolo e de caranguejos. Eles são fiéis dizimistas e ofertantes. Enquanto isso, os grandes líderes estão se prostituindo com o poder político, o poder econômico, temporal e efêmero. É lamentável. Se, hoje, eu não tivesse feito uma decisão de natureza confessional e muito consciente, eu jamais entraria num templo denominado cristão.

L. LIVREO senhor tocou num ponto importante. Que são os altos salários de pastores e líderes de grandes igrejas e ministérios locais. Comparativamente, têm pastores ganhando mais de 300 mil reais por mês, como é o caso de um conhecido pastor do interior paraense. Enquanto há pastores e missionários sofrendo na obra sem ganhar nada, como é o seu caso e o caso de outros que não têm ganho fixo. Como o senhor vê essa desigualdade no meio de um povo que se diz de Deus e cristão, que era para fazer tudo diferente? Inclusive pagando bem os seus missionários para que eles pudessem andar melhor e ir mais longe na tarefa de evangelização?

PR. TAVARES — Eu vejo de duas maneiras. Antes quero destacar que não vejo com sentimento de revolta ou de ódio. Não. Longe de mim. Em primeiro lugar eu vejo com muita tristeza. Porque eu conheço o dia-a-dia dos missionários no campo. Apenas 2% ou 3% de missionários ganham acima de dois salários mínimos. A maioria ganha um salário mínimo. Pior: existem casos de missionários que, além de ganhar pouco, o dízimo dele é descontado na fonte. E isso é ilegal. É um confisco. Isso é apropriação indébita do alheio. Existem várias igrejas que fazem isso na surdina. E isso me dói. Me deixa triste. Mas não me enche de ódio. Por que? Porque eu tenho vida com Deus. A segunda forma de eu ver isto, é como cristão. E como cristão, eu consigo ver uma mudança. Mudança a partir de pessoas como o pastor Battista Soarez que eu o conheço há quase quarenta anos e sei da sua capacidade e da sua forma de pensar. A partir de pessoas como Rondaldo Almeida Lindório, um missiólogo conhecido mundialmente, mas um homem de uma humildade rara. E outros como um grande amigo meu, Flávio Paiva, que está na África com a família, morando no Senegal e já percorreu outros países da África. Então, existe sim uma possibilidade, ainda que remota, de a gente se juntar, fazer projetos, orar e se mobilizar efetivamente para fazer a coisa acontecer como a gente entende que Deus quer fazer. O importante é a gente não desanimar. E ficar longe daqueles que estão na igreja, mas vazios de Deus. Estão lá apenas sugando a igreja e botando o pé em cima daqueles que realmente têm Deus na vida e chamada divina. Mas estão neutralizados por líderes que há tempos perderam ou nunca tiveram a visão do reino. O certo é que é difícil fazer missões. É muito complexo ser missionário numa cultura em que o “ter” se sobrepõe ao “ser”, contrariando, aí, uma teologia de um homem que não foi um teólogo acadêmico, mas foi um erudito de mão cheia, que foi C. S. Lewis, autor de Cristianismo puro e simples.

Pr. Tavares com a esposa Eliene doando cesta básica a missionários | Foto: Divulgação

L. LIVRE — Sim. Verdade. E que não era pastor.

PR. TAVARES — Não era pastor. Mas trabalhou três ideias incríveis, que são a “ideia da rebelião”, a “ideia da graça” e a “ideia de Deus”. Ele baseou-se em três questões: quem é Deus?; o que é graça?; o que é rebelião? E quando ele fala de rebelião, ele começa por Adão e Eva. Os primeiros humanos que se rebelaram contra Deus porque confundiram o “ser” com o “ter”. Porque o diabo chegou de pronto e falou para eles: “vocês vão ter”. “Ser” eles já “eram”. Agora, eles estavam diante da proposta do “ter”. E é isso que enche e engorda os olhos da humanidade. E, nesse sentido, homens e mulheres vocacionados para missões estão sendo estigmatizados como mendigos. Alguém chega e pergunta: você é missionário? E você responde: sim, sou missionário. E aí logo você escuta: então você está fadado a ser mendigo. Eu, como pastor missionário, vivo de doações, embora seja obreiro de uma convenção rica. Não tenho salário. Agora imagine ter que dar assistência para mais de sessenta campos missionários sem ajuda financeira fixa, a mercê apenas de doações?! Não tenho nada.

Com a esposa Eliene em viagem missionária levando Ombro Amigo | Foto: Divulgação

L. LIVRE — Imagino a sua situação...

PR. TAVARES — Não tenho, sequer, nenhum jazido para ser enterrado. Se eu morresse hoje, não teria nenhum lugar para ser sepultado. Já fui executivo de três multinacionais. Tinha um bom salário e uma vida de regalias. Trabalhava muito. Mas ganhava bem. Me sentia até orgulhoso. Gostava da vida que tinha. Estaria sendo hipócrita se eu dissesse que não gostava da vida que levava. Mas nada se compara com o que sinto hoje, ao entrar numa canoa e pegar aquele ar puro e refrescante sobre as águas de um rio em direção ao campo missionário, levando ajuda aos missionários que vivem ganhando almas para Cristo sem praticamente nada, passando dificuldades com esposa e filhos, misturando lágrimas com farinha e peixe seco. Isto é o que eu vivo. Mas sou realizado do ponto de vista vocacional. Porém, sou entristecido em ver pessoas sofrendo no campo, enquanto outros na cidade, que se dizem crentes, no topo da pirâmide, estão reproduzindo modelos de tremenda desigualdade social. Não estou generalizando. Há pessoas boas, nesse meio, que eu conheço de perto, que contribuem com o reino, inclusive por meio de suas ideias, projetos e livros. Como já disse, Battista Soarez, Ronaldo Almeida Lindório, Wayne Cordeiro e outros bons autores, inclusive dos EUA, são homens de Deus que estão dentro da instituição, mas que ainda fazem a diferença. Por causa desses homens, a instituição, no seu todo, ainda não está podre. Aqui mesmo em São Luís têm homens de Deus que ainda têm o coração na obra, como, por exemplo, o pastor Wellington Garcez, um empresário que sempre me ajuda, pegando um pouco do seu salário e contribui com a obra missionária. E ainda disponibilizou as instalações da sua igreja para a nossa Agência Missionária Ombro Amigo.

Pr. Tavares e esposa navegam 7 horas para chegar a ilhas do Atlântico levando ombro amigo | Foto: Divulgação

L. LIVRE — O senhor já disse que não tem salário como pastor missionário. Como é dar assistência para mais de sessenta campos missionários no Brasil e exterior, recebendo apenas pequenas doações de amigos? Como funciona essa ajuda?

PR. TAVARES — Na verdade, no Brasil, são 79 casais de missionários que dou assistência. Fora do Brasil são 12 missionários. Como não tenho salário, as ajudas no exterior são feitas de forma remota. Por meio de doações. À distância. No Brasil, eu vou pessoalmente. Mas todo mês Deus usa pessoas para ajudar. Como eu disse, têm pessoas que me ajudam dentro da sua possibilidade. Como o senhor, por exemplo, que me deu ajuda ontem. Mas eu sei que o senhor também não tem, a não ser a sensibilidade de contribuir na medida em que pode. Tem outros pastores que também me dão alguma coisa. Mas eu e minha esposa precisamos comer todo dia. Tenho contas a pagar. Mas ajuda mesmo da igreja ou da convenção eu não tenho. Nenhum centavo.

Caixas de alimentos são levadas a missionários em regiões sem água e luz | Foto: Divulgação

L. LIVRE — No âmbito do ministério cristão, há muitas pessoas em crise em relação ao seu chamado. Como o senhor vê essa questão vocacional hoje em dia?

PR. TAVARES — O senhor usou uma expressão que tem se tornado comum e que, no entanto, é um conceito que precisa ser revisto. A palavra “chamado”. Eu lembro de Sophie Muller, uma missionária colombiana radicada nos EUA, que no final dos anos 1940 e 1950 trabalhou com povos indígenas no extremo norte do Amazonas. Ela chegou a traduzir para a língua indígena praticamente todo o Novo Testamento. Essa mulher fez um trabalho extraordinário. Plantou igrejas, sozinha. Aprendeu a língua dos indígenas. Era uma mulher que não tinha um metro e meio de altura. Aquela mulher levantava às quatro horas da manhã e, junto com os índios numa canoa, saia visitando os lugares ribeirinhos. Porque para que você possa fazer uma tradução bíblica mais ou menos próxima da realidade nativa, é preciso que você esteja inserido no contexto daquela realidade. E quatro horas da manhã ela estava numa canoa traduzindo os textos bíblicos. E o indígena que estava remando a canoa dizia-lhe: “missionária, eu não estou aguentando mais”. E ela respondia: “calma, ainda faltam dois versículos”. Depois ela voltou para os Estados Unidos e a imprensa americana ficou encantada com o trabalho que ela fez. E um dia os jornalistas lhe perguntaram: “missionária, qual o segredo do seu chamado?” E ela, então, respondeu: “Eu? Eu não recebi chamado”. E aí eles perguntaram novamente: “e como se explica esse fenômeno na sua vida, em fazer um trabalho maravilhoso como esse, de plantio de igrejas no Brasil?”. Ela respondeu: “Eu recebi uma ordem. E eu apenas obedeci”. Então, a explicação é esta: o chamado é uma ordem. Quem decide amar a Deus, obedece.

Região de Caité | Foto: Divulgação

L. LIVRE — O senhor é mestre em antropologia missionária. Tem dois doutorados. Um em teologia cristã. E outro em educação teológica. Com toda essa bagagem, como o senhor analisa o quesito “identidade cristã”?

PR. TAVARESO verdadeiro cristão, o cristão autêntico, não tem escolha em relação ao que Deus estabeleceu para ele. A gente se baseia tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento. Então, a identidade cristã tem sido solapada, principalmente nos Estados Unidos, por aquilo que chamamos de “pós-cristianismo”. E isso tem um reflexo direto na obra missionária. Principalmente do ponto de vista transcultural. Para você ter uma ideia, no Brasil, nós estamos patinando como um carro atolado, sem sair do lugar. Agora em 2022, faz vinte anos que não conseguimos enviar seis mil missionários por ano para o campo transcultural. Ou seja, isso representa, se comparado com a quantidade de cristãos nominais, um avanço minimamente nanico. Quando o Brasil se arvora dizendo que tem mais de 50 milhões de evangélicos, se você pegar esse número e fizer uma correlação com o número de enviados vocacionados para o campo missionário transcultural, isso representa 0,001%. É como se você dividisse um em seis. E a sexta parte dessa quantidade não chega a ser uma coisa diabólica, mas é algo inócuo do ponto de vista missionário.

L. LIVRE — Nossa, Deus! Sem exagero, pastor?

PR. TAVARES — Sim. Sem nenhum exagero. Totalmente sem consistência. Quer dizer, a qualidade de evangélicos que existe no Brasil e na América Latina, e até nos EUA, é inversamente proporcional à quantidade de missionários enviados para o campo. E isso está intimamente relacionado com a identidade cristã. Por exemplo, a Universidade Mackenzie, uma das maiores de São Paulo, onde tem a maior biblioteca da América Latina, é uma instituição cristã. Mas, infelizmente, está caminhando para o secularismo. A maioria dos jovens que estudam na Mackenzie, na faixa etária entre 18 a 27 anos, é formada por ateus. Não creem em Deus. São jovens da área de ciências e tecnologias influenciados por pensamentos não-cristãos. A culpa não está nos missionários que fundaram a instituição. Isso é uma avalanche. É uma tendência cultural moderna no contexto das tecnologias da informação, como teorias, internet, ideologias etc. E só quem pode frear isso é o Espírito Santo por meio de pessoas vocacionadas. David Levingstone, missionário escocês entre as tribos africanas, passou 40 anos servindo a Deus na obra missionária. Um dia ele morreu. Os estrangeiros foram buscar seu corpo. Mas se depararam com uma situação inusitada. Um nativo pegou uma espada e abriu o peito de Levingstone, arrancou-lhe o coração e disse: “O corpo pode ser escocês. Mas o coração é africano”. Cavou um buraco e enterrou o coração do missionário ali mesmo, no meio das tribos, em pleno solo africano. Tempos depois, passaram uns missionários por aquela região e perguntaram aos nativos se eles conheciam a Cristo. E olha o que eles responderam: “Nós conhecemos um Cristo que passou por aqui. Só que o nome dele não era Cristo. Era David Levingstone”. Isto é identidade cristã. Se identificar com Cristo é ser parecido com Ele.

Em região carente de Sucupira do Riachão | Foto: Divulgação

L. LIVRE — Incrível isso. Mas quero insistir numa coisa. Sobre o seu sustento missionário. De quanto o senhor precisaria, hoje, para sobreviver nas suas ações missionárias? E deixar de andar a pé, como o mesmo senhor disse, por até 200 quilômetros fazendo a obra missionária, por meio do Projeto Ombro Amigo?

PR. TAVARES — Eu necessitaria de oito salários mínimos por mês. Com esse dinheiro, eu conseguiria por gasolina no carro e comer durante as viagens. Coisa que dezesseis congregações, por exemplo, resolveriam se cada uma delas se dispusesse a dar uma oferta de meio salário por mês. O que é tão pouco. Não seria por amor a mim. Seria por amor à obra de Deus. Com oito salários eu viveria com o mínimo de dignidade. Sem ter que andar a pé ou de bicicleta, porque é muito perigoso. E a pé é muito dolorido. Eu já estourei unhas. Já teve vez que eu tive de tirar o sapato porque a unha estava pretinha de sangue de tanto eu andar a pé. Uma vez eu caminhei quase 70 quilômetros num dia só. Então, eu entendo, hoje, que precisaria de um valor que fosse suficiente para colocar gasolina no meu carro, pagar a prestação dele e manter a minha família com o básico. Nem plano de saúde eu teria. Mas oito salários mínimos por mês daria para eu viver com o mínimo de dignidade.

L. LIVRE — E dignidade, em matéria de obra missionária, é uma palavra que parece estar sendo totalmente relativizada ou até mesmo ignorada pela igreja instituição atualmente. É isso?

PR. TAVARES — Exatamente. O campo missionário sofre, atualmente, uma tremenda injustiça. Almas estão morrendo sem salvação, e os missionários estão passando fome e morrendo junto com elas. Tem missionário cujos filhos não conseguem nem estudar. Enquanto isso, pastores e líderes de grandes igrejas desfilam na frente da gente com carros caros e recebendo salários altíssimos, sem nenhum peso de consciência.

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Para quem desejar contribuir com o Projeto Ombro Amigo, o celular/WhatsApp do pastor Tavares é (98) 9 8448 5839.

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– Fim –

2 comentários:

  1. Deus nos dá tempo e oportunidades para servir ao Reino, e por este favor divino tive oportunidade de dar uma carona ao Pr Tavares, a partir de então fizemos algumas viagens juntos e pude constatar pastores e missionários em situações de vulnerabilidade social, uma triste realidade que indubitavelmente será tratada um dia diante do Autor da Vida.
    Quase que a totalidade desses homens e suas famílias, são justamente aqueles que entenderam a vontade de Deus a todos os homens e como servos obedientes tem ensinado a outros!

    Forte abraço Pr Tavares (meu irmão 678).

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    1. Muito obrigado, querido. Deus o abençoe. Vamos orar pelo pastor Tavares e sua esposa.

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