O “ímpeto” da religião
interior
O fanatismo religioso é uma epidemia silenciosa que sufoca a abundância da graça; um pecado perigoso
disfarçado de santidade.
Por BATTISTA SOAREZ
É pastor, jornalista, escritor,
psicopedagogo e mestre em Teologia Pública e Social. É editor e autor de vários
livros, entre eles A igreja cidadã e Ser cristão em tempo de crise.
“Porque o
pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e sim da
graça” (Rm 6.14).
“Porque,
no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo, nos meus
membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz
prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros” (Rm 7.22,23).
“Porque o
fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê” (Rm 10.4).
“Jesus é a revelação divina que destrói
qualquer religião” (Karl Barth).
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No final de semana passado, estive
ministrando aula num polo de uma faculdade de educação no povoado Barro Duro, interior de Tutóia, no Portal do Delta das Américas, litoral maranhense. Pessoas simples, hospitaleiras.
Casas com quintais espaçosos e arborizados. O vento que vem do mar sibila o dia
inteiro nas folhagens de árvores frondosas, fazendo o ambiente ficar
tipicamente agradável. Entre elas, ouve-se o cantarolar de passarinhos
festejando a alegria por ainda ter vegetação, para felicidade das espécies
silvestres. Algumas em extinção, por causa da agressão humana à natureza. Outras,
como a pitangus sulphuratus — ave passeriforme tiranídea popularmente
conhecida no Brasil como “bem-te-vi” —
procuram se esconder em lugares inusitados, na tentativa de reduzir a possibilidade
de sua total extinção. Se bem que a vegetação está perdendo para o processo de
urbanização e, portanto, cada vez mais os pássaros perdem seu espaço no
meio-ambiente.
A aula estava maravilhosamente divertida.
Na sala, a maioria era representada por mulheres. Aliás, temos de reconhecer
que elas tomaram o mercado. A vaidade, de salto alto e batom, invadiu mesmo o mundo. Conquistou todos os espaços. Assumiu
posição e poder. Só não se sabe o futuro disto. Porque vaidade e poder, juntos,
representam perigo. Tanto quanto a arrogância e o machismo dos homens.
No intervalo da aula, não tinha lanche. E,
como sou diabético, não podia ficar sem lanchar. Por causa da taxa glicêmica, obviamente.
Do outro lado da rua, entretanto, tinha um comércio aberto, apesar de ser
domingo. Dirigi-me para lá rapidamente, na intenção de fazer o lanche.
— Tem suco sem açúcar? — perguntei ao atendente.
— Tem não, senhor — respondeu um rapaz
jovem, de mais ou menos 26 anos.
— Tem biscoito integral?
— Tem não, senhor. Zero só tem refrigerante — finalizou o rapaz, descartando qualquer possibilidade de eu continuar explorando os produtos de seu estabelecimento que eu pudesse degustar.
Aquele moço era o proprietário do estabelecimento. Ao
lado dele, uma mocinha loira, jovem, de mais ou menos 18 anos, o ajudava nas
atividades de venda. Era a sua esposa.
— O senhor é crente? — quis saber o rapaz sem pestanejar.
— Sim. Sou — respondi.
— Logo a gente vê. O crente é diferente — disse o rapaz, olhando
para as minhas vestes, perguntando de qual igreja eu era, com certo ar de altivez
religiosa.
Ele explicou que percebeu pelo meu jeito
de vestir. Eu estava trajado com calça social, camisa manga longa e sapatos
pretos bem engraxados. Típico de uma espiritualidade estereotipada, que
normalmente os religiosos fanáticos usam para figurar uma santidade aparente.
— Eu e minha esposa somos crentes — argumentou ele, apontando
para a mocinha loira ao lado, que estava séria, calada, olhar acabrunhado.
— Ah, olá! Muito prazer! — dirigi-me a ela, que se
manteve calada e de cabeça baixa.
De maneira forte, altiva, veemente, o
rapaz me perguntou se, em São Luís, as mulheres crentes “usam calça”, se “usam
batom”, se “pintam unhas”, se “cortam cabelos”. Eu fiquei meio sem jeito, sem
saber o que responder... Isto porque, há tempos, me desliguei desse evangelho
da idolatria à indumentária, aos usos e costumes, da religião do naturalismo anti-social.
Além disso, tenho pregado — quer falando, quer escrevendo — o evangelho da justiça
de Deus: a misericórdia, o perdão, o amor incondicional, a paz, o respeito à
vida, a união do corpo de Cristo, o fazer espiritual no âmbito da justiça social.
E, é claro, outros princípios cristocêntricos do Sermão da Montanha., pouco seguido pela maioria dos cristãos
Mas o rapaz me olhava, formulando
perguntas e me fazendo concordar com o que eu não queria concordar. Queria que
eu confirmasse que “é pecado” aquilo que a Bíblia não diz que é. Mas a religião
da idolatria evangélica sempre tem um jeitinho de “postar” nas Escrituras
aquilo que Jesus não falou, aquilo que Deus nunca disse, nem os profetas
preconizaram. Mas o jovem comerciante insistia em afirmar “coisas”, num ímpeto
de religiosidade estranha.
— Você sabe, não é, pastor? Mulher usar
calça é pecado. Deus não aprova isso — acrescentou ele.
— Éh. Tem umas mesmo que não combinam. Não
fica legal. Uma bela saia ou vestido ficam melhor — dizia eu sem querer
desapontá-lo.
— Pintar unhas é coisa do diabo, né,
pastor? — insistia o rapaz, ao
lado da esposa que apenas me observava, calada, parecendo esconder, no fundo do
coração da vaidade feminina, o desejo de discordar do marido.
Mas a moça, jovem e bonita, parecia privar
as respostas com um meio silêncio tristonho, com um cerrar de lábios pouco
feliz e olhar desconfiado e sério.
— Éh. Há alguns exageros por aí — respondi.
— Cortar cabelo é outra coisa satânica. Você
sabe, né, pastor?
— Ãhãn! — assentia eu, ainda sem querer
decepcioná-lo. —
Às vezes,
não pega bem, dependendo do perfil físico da mulher.
— Sabe, pastor, tem muito crente que vai
pro inferno. Né, pastor? Tá na igreja, mas não está salvo. Você concorda,
pastor? — provocou ele, com seu aspecto
sisudo e austero.
— É verdade — disse eu. — Há pessoas que ainda não nasceram de
novo. São apenas religiosas. Ainda não conseguem enxergar o evangelho pelo viés
da salvação genuína. E parecem que nunca vão conseguir. O espírito da religião causa
uma cegueira terrível, irmão, uma confusão infeliz entre graça e legalismo. Os
crentes não conseguem ver a autêntica suficiência da salvação pelo aspecto da
cruz. A salvação é de graça, mas os crentes religiosos sempre acham que não.
Preferem andar pelo caminho obscuro do fanatismo pálido e infeliz. Para alguns,
o sacrifício do Cristo não foi suficiente. Muitos crentes acham que precisam
fazer um esforço tosco e sem nexo nas Escrituras: procuram, então, colar “remendo
de pano novo em vestes velhas” (Mateus 9.16) ou remendos velhos em roupa nova.
Parecem querer ensinar Jesus a trabalhar no coração do homem, quando deveriam
atentar para o que Ele nos ensina. Querem ajudar o Cristo no processo da redenção.
Parecem querer administrar o universo no lugar do Criador. E, com tudo isso, acabam
criando um “outro evangelho”.
— Mas o que o senhor acha, pastor? — insistia o irmão
comerciante, mesmo depois da minha resposta.
— Acho, sinceramente, irmão, que a
liderança cristã precisa estudar para ensinar os crentes a enxergar o Evangelho
biblicamente correto. Os crentes precisam estudar. Ler mais a Bíblia. Se aprofundar
na cultura bíblica. Buscar profundamente intimidade com Deus para que o Espírito
Santo lhes dê sabedoria e conhecimento.
— É verdade, pastor! — concordou o rapaz,
sempre enfatizando as “doutrinas” sufocantes da religião evangélica.
Finalmente, terminou o intervalo, e chegou
a hora de eu voltar à sala de aula. E eu dei graças a Deus.
Mais tarde, o motorista que me levou de
volta ao hotel, ao passar em frente de uma igreja evangélica, comentou:
— Professor, os pastores desta cidade são
tudo safados. Tudo corruptos.
Eu fiquei indiferente com aquela súbita
informação-afirmativa, e perguntei por quê?
— Esse pastor aí — disse ele, apontando
para a igreja — me pediu seis mil reais
para fazer os crentes votarem na minha esposa que é candidata a vereadora.
— É mesmo? — espantei-me.
— É! E ele já pegou dinheiro do prefeito
para apoiá-lo e fazer a igreja ficar do lado do prefeito, que está tentando se
reeleger.
Fiquei estarrecido e me questionando: que
igreja é essa que prega para mulheres que é pecado usar calça, batom, aparar
cabelos e pintar unhas e, ao mesmo tempo, mete a mão no bolo da corrupção
política? Depois de tudo ainda têm a coarem de, no culto, levantar a mão suja
para o alto e gritar “amém!, glória a Deus!, aleluia, irmãos!”. Não tem jeito.
Precisamos estudar as Escrituras e orar. Do contrário, a igreja estará perdida
no labirinto da hipocrisia religiosa. Sem precedentes. Mas o apóstolo Paulo nos
alerta:
“O amor
seja sem hipocrisia. Detestai o mal, apegando-vos ao bem. Amai-vos cordialmente
uns aos outros com amor fraternal, preferindo-vos em honrar uns aos outros. No
zelo, não sejais remissos; sede fervorosos de espírito, servindo ao Senhor” (Rm
12.9-11).
“Acolhei
ao que é débil na fé, não, porém, para discutir opiniões... Não nos julguemos
mais uns aos outros; pelo contrário, tomai o propósito de não podes tropeço ou
escândalo ao vosso irmão. Eu sei e estou persuadido, no Senhor Jesus, de que
nenhuma coisa é de si mesma impura, salvo para aquele que assim a considera;
para esse é impura” (Rm 14.1; 13,14).
Refletir sobre estas palavras da Bíblia
me faz entender que precisamos rever nosso conceito de conduta cristã e
reorganizar a nossa vida com Deus. A ética da vergonha, no âmbito da moral
religiosa, é o princípio da busca de santidade em Cristo Jesus, o Senhor.
Santidade, na minha opinião, é caráter. Se temos caráter, temos santidade em
Deus. Se não o temos, a santidade está longe de nós. Se temos caráter, temos
espiritualidade. Se não temos caráter, somos apenas falsidade.
Como escreveu Voltaire, “é assim que se
vê, neste vasto quadro de demência humana, os sentimentos dos teólogos, a
superstição dos povos e o fanatismo: variados, mas sempre os mesmos ao lançar a
terra em brutalidade e calamidade”.
É preciso se divorciar da religião para
poder se amar a Deus. A Bíblia ensina que não se pode amar a dois senhores: ou
se ama a lei (a religião) ou a graça (a vida abundante em Deus), conforme se
pode lê em Romanos 10.4.