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sábado, 23 de março de 2019

ESPIRITUALIDADE ENVOLVENTE E MISSÃO PLANETÁRIA


Espiritualidade envolvente e missão planetária
Novas perspectivas para uma evangelização humanitária com visão holística



Pr. Battista P. Soarez [1]



INTRODUÇÃO
O presente artigo nasceu de uma dialética centrada no desejo e na visão que temos dos trâmites da missão cristã que ora se volta para todos aqueles que estão inquietos sobre o futuro da missão da igreja no mundo. Neste viés, surgem perguntas como: o que vamos fazer? Como vamos fazer? Onde vamos fazer? Quando (em que momento) vamos fazer? Para quem vamos fazer? Com quem vamos fazer? Para que vamos fazer?
A construção desta dialética apresenta — dirigindo-se a pessoas dedicadas à teologia missionária praticada principalmente no Brasil, noutros países da América Latina e em diferentes partes do mundo — uma análise não só positiva, mas também crítica e entusiasticamente. Isto se diz no sentido de que muitos acreditam numa prática missionária que se move para todas as direções e vai evoluindo à medida que surgem novos padrões e/ou novos paradigmas de mudança.
Muitos missionários que se arriscam no campo sem muito suporte financeiro por vezes se autoquestionam se de fato a igreja leva a sério o “ide” de Jesus da forma como Ele ensinou àqueles que o seguiam por convicção e também porque acreditaram em tudo o que Ele disse e fez. Eles, os missionários, também se perguntam sobre as transformações que a igreja organizada socialmente pode realizar na sua práxis evangelizadora de hoje em dia, e na sua práxis evangelizadora do futuro.
Como tema fundamental da Igreja de Cristo, a evangelização se projeta de várias maneiras por uma auréola de indiscutibilidade sobre a imutabilidade do plano de Deus para o mundo. O plano de Deus para o mundo é o reino. A ação missionária do corpo de Cristo ocorre em função do reino e é uma ciência sagrada robustecida por experiências diversas no campo social-espiritual. Em tempos anteriores ― mais precisamente nos séculos XIX e XX ― os pioneiros das missões modernas fizeram uma proposta de teologia missionária compreendida como missiologia mundial, com suas diversas complexidades sociais e fazeres relacionados às relações evangelísticas e humanitárias, com uma certa tônica de antropologia social no contexto da geografia humana.[2]
Hoje podemos chamar isto de “missiologia planetária” pelo fato de incluir-se, aí, não apenas o “mundo-espiritual” humano, mas também a cosmologia social que abrange o cuidado humanitário em todos os aspectos. Isto está basicamente dentro de uma dimensionalidade daquilo que Friedrich Nietzsche chamou de a “gaia ciência” e que muitos não compreenderam e ainda hoje não compreendem. Embora o filósofo existencialista alemão esteja fazendo uma alusão à poesia moderna europeia, ele trata a respeito de arte, moral, história, conhecimento, ilusão e verdade. Claro que a ideia filosófica da morte de Deus, proclamada em parte do livro, é descartável do ponto de vista cristão. Todavia, a análise da história, da moral, do conhecimento e da verdade mostra uma cosmologia social que caminha na culminância de ordem e desordem, de criação e destruição. Ou seja, um mundo assim permite que se vislumbre o surgimento de um discurso sobre missão planetária fincada na possibilidade de novas ordens e atividades de transformação da realidade social.
A partir desta visão social ― já no decorrer do século XX com nítido vislumbre de projeção para o século XXI ― os missiologistas mais dedicados propuseram uma prática missionária que pudesse sair do gueto de sua própria confissão religiosa para ser capaz de falar a toda a sociedade.[3] Isto é, uma sociedade diversificada no seu atual estado de avanço e pluralidade. De fato, no mundo de hoje, a prática missionária e evangelizacional não se estrita mais no confessional e no denominacionalismo. Ela deve estar conectada no mundo real e, portanto, na realidade do mundo com seus avanços científicos, tecnológicos e com suas tragédias ― seja no sentido de suas necessidades no seu estado de miséria, seja no sentido da violência no seu amplo aspecto social, comunitário e familiar.
As perguntas mais frequentes que fazemos no campo missionário geram respostas que nos levam a pensar num atraente panorama: a prática missionária do “agora” e do “futuro” parece caminhar rumo a um modelo de evangelismo envolvente, relacional e ao mesmo tempo pluralista-unificado na diversidade dos dons espirituais ― sem nenhum complexo tradicional de superioridade religiosa e/ou denominacionalista ― seguindo o horizonte de uma teologia missionária voltada respectiva e tautocronicamente para o público igreja, para o público acadêmico e para o público sociedade. Nesta perspectiva a prática missionária, na lógica de sua função social, tem o objetivo de atender às necessidades das pessoas na qualidade de sujeitos sociais passíveis de transformação.
Logo, os missionários precisam ter consciência planetária e consequentemente estabelecer a função social da igreja na sua relação com o mundo. Sempre dizemos que a igreja que não tem função social não é corpo de Cristo, uma vez que Cristo é o soberano projeto de Deus para satisfazer as necessidades do mundo e, portanto, para transformar a realidade espiritual-social do mundo. Quando uma pessoa se converte a Cristo e, portanto, passa a fazer parte do corpo de Cristo, ela muda seu comportamento social. Porque? Porque o evangelho refaz o homem tanto espiritualmente como socialmente.
É por meio da sua função social no mundo (amor ao próximo) que a igreja atrai o mundo para conhecer Cristo. E este é um resultado natural: a igreja “faz” em Cristo e por Cristo e logo o mundo reconhece a sua necessidade de viver em Deus e para Deus. A compreensão do evangelho de Cristo leva o homem e a mulher à experiência do novo nascimento.

1. MISSÃO PLANETÁRIA EM FACE DA POBREZA E DAS INJUSTIÇAS
Na prática missionária e evangelizacional, o diálogo social com o público sociedade deve seguir um itinerário na história social do mundo pós-moderno que faça brandir o martelo missionário da igreja nas células comunitárias onde estão presentes expressões da realidade social como a pobreza, a fome e as injustiças. O mundo pós-moderno é o mundo atual com seus protagonismos da realidade social.[4] Ou seja, o mundo que nos permite percorrer pelos horizontes que estão diante de nossos olhos. Nasce, aqui, uma visão de evangelho, de reino e de mundo que podemos chamar de missão planetária por causa da pluralidade de expressões sociais que ela é capaz de abranger.
Por um lado, a profunda evolução das estratégias missionárias no contexto da realidade social nos leva a passar por experiências espirituais que, nos tempos de hoje, têm gerado um espelho social verificador do ritmo de seu encontro com outras realidades missiológicas longe dos ciúmes e dos egoísmos eclesiais. E longe, também, das divisões que historicamente têm enfraquecido o corpo de Cristo e, consequentemente, também têm feito minguar o volume de produção em matéria de resultados.
Por outro lado, temos de pensar que essa evolução de estratégias missionárias sempre estará se renovando. Nunca vão estar concluídas. Mas que, antes, novas e profundas transformações ocorrerão no mundo. Isto significa que é a própria evolução das sociedades simples (no âmbito da família)[5] e das sociedades complexas (no âmbito da sociedade evoluída cultural, educacional, científica e tecnologicamente) bem como da humanidade global é que está impulsionando as transformações incessantes das estratégicas missionárias.
Houve uma época em que cada segmento religioso pensava e levava o povo a pensar que fora do seu gueto denominacional não havia salvação. Parecia que sua mentalidade era muito diminuta em relação à plenitude do evangelho. E, logo, o seu nível de compreensão era muito baixo. Em que isso repercutia? Repercutia na relação da igreja com o mundo. Sua dialética, portanto, não era social. Era uma dialética fechada, bem como o era sua comunicação com as necessidades do mundo real.
Então os grupos religiosos divergiam entre si. Cada um criava a sua própria doutrina e a sua própria teologia. Era uma época exclusivista e excludente. Por conseguinte, a teologia de cada religião dessas era um mundo fechado. Falava para se própria num circuito cerrado. Por isso as expressões da realidade social eram ignoradas pela maioria dos grupos religiosos. Os ensinamentos de Jesus proclamados no Sermão da Montanha eram totalmente obscurecidos em detrimento das particularidades doutrinárias de cada grupo religioso.
O problema é que, do ponto de vista bíblico, a maioria dessas doutrinas era carregada de injustiças e falta de misericórdia. Um certo ímpeto de insolência religiosa estava presente aí.
Entrementes, os ensinamentos de Jesus Cristo no Sermão da Montanha não são simplesmente doutrinas religiosas. São princípios universais da Justiça de Deus que não mudam e nem se alteram. As doutrinas religiosas, sim, são passíveis de questionamentos, inaceitação e alteração. Os princípios universais da justiça de Deus, entretanto, não têm como serem questionados e nem alterados.[6] No Sermão da Montanha todas as doutrinas de Jesus não são meramente doutrinas, mas princípios universais inalteráveis e aceitáveis em qualquer cultura, em qualquer país, em qualquer nação, em qualquer língua, em qualquer civilização e em qualquer tempo. Todos os princípios de Jesus podem ser usados como método de evangelização no mundo da sociedade plural, inclusive o princípio da paz e o princípio do amor.
Nos capítulos 5, 6 e 7 do livro de Mateus, Jesus fala de princípios universais como, por exemplo, humildade, quebrantamento, mansidão, amor, justiça, misericórdia, pureza, paz, resignação, perseverança, exultação, transparência, etc. Todos estes princípios são métodos para alcançar pessoas para o Reino de Deus.
Logo, os princípios de Jesus não são exclusivistas e nem excludentes. Também não são fechados em uma única cultura. Isto é, não são, portanto, uma dialética fechada. Mas sim uma dialética aberta para a diversidade de grupos sociais com uma comunicação também aberta para as várias linguagens e culturas. Consequentemente, a comunicação e o diálogo entre o reino de Deus e o mundo dos humanos constituem-se uma comunicação verdadeiramente evangelizacional. Uma comunicação aberta e de alcance para fora. Por isso ela é planetária.
Deste modo, as perspectivas e atitudes religiosas exclusivistas e excludentes dão lugar, no âmbito das latitudes do mundo, às missões do evangelho inclusivo. Um evangelho de combate à pobreza e às injustiças sociais que mantém uma espiritualidade perfeitamente abundante e ao mesmo tempo inserida no contexto social. Aqui, por conseguinte, podemos falar de uma certa sociologia missionária, considerando o fato de que a fome, a pobreza, a miséria e a violência são problemas sociológicos. E o evangelho de Jesus é “inclusivista/inclusivo” no momento em que sua abordagem alcança as pessoas em situação de vulnerabilidade social e as inclui no contexto da vida abundante em Cristo, dando-lhes o cuidado necessário com alimentação, saúde, moradia, trabalho, renda e educação. Desta maneira, a missão planetária é existencial, isto é, centrada na pessoa humana. Na pessoa do indivíduo alcançável, a quem se pode alcançar com a ação macrossocial-espiritual do evangelho único e verdadeiro.
A missão cristã é planetária quando ela direciona suas atividades para os problemas da cosmologia social, tendo como foco o espelho social das necessidades humanas. A missão planetária é planetária porque busca corrigir a excludência das injustiças sociais por via do evangelho com a prática da sua superioridade includente. A includência social é uma espécie de ortopraxia[7] comunitária, em que ela se dirige para a correção das deformidades sociais como, por exemplo, a pobreza, a fome, o analfabetismo e a violência.
A prática da ortopraxia é uma maneira eficaz de se praticar missão planetária no âmbito do inclusivismo social como diálogo evangelizacional de participação comunitária. Isto trabalha a lógica das funções e dos resultados como ocorreu, por exemplo, entre os convertidos do livro de Atos em que, muitas vezes, as funções se tornam diretrizes e os resultados se tornam objetivos. Quando os apóstolos usavam, por exemplo, as expressões “consolai-vos uns aos outros”, “edificai-vos reciprocamente”, “ampareis os fracos”, “admoesteis os insubmissos”[8] etc., estavam estabelecendo diretrizes para a funcionalidade da igreja local. Isto se estende até hoje. A igreja, então, anuncia o evangelho da justiça de Deus para combater as injustiças dos homens numa sociedade de injustiçados. As injustiças dos homens são obras malignas de principados e potestades (Efésios 6.12) que neles operam. E a única maneira de resisti-los e combater as injustiças por eles operacionalizadas é praticando a justiça de Deus, que é fundamentada no seu grande amor. Este, de fato, é o papel da igreja corpo de Cristo operante no mundo.

2. A ESPIRITUALIDADE QUE NOS MOVE “PARA” E “NA” MISSÃO PLANETÁRIA
Diante das profundas experiências espirituais que temos tido no campo das missões evangelizacionais, temos feito pelo menos uma pergunta provocativa: como alcançar as almas para Cristo se não estivermos revestidos de uma espiritualidade que nos mantenha cheios de Deus? Podemos imaginar um suposto “mover” evangelístico carregado de nossas próprias forças individualistas, como tem acontecido em muitas épocas, mas o resultado é cansaço e enfado. Muitos líderes de missões têm sido abatidos pelo esgotamento espiritual. Lendo os fatos, percebemos que isso acontece quando, por uma razão ou outra, o líder de missões tenta administrar a obra espiritual sem a consciência daquilo que Jesus (em João 17.23) e o apóstolo Paulo (em Filipenses 4.3-6) chamam no grego de teleioo, ambos se referindo a uma mais que absoluta perfeição em unidade.
Em Filipenses 3.12-16, Paulo usa o mesmo termo para tratar da nossa soberana vocação. Para ficar bem claro, o termo teleioo é uma transliteração do hebraico yachid que quer dizer algo mais do que unidade absoluta que, na língua hebraica, é echad. Teleioo, portanto, transliterado do hebraico yachid, quer dizer um tipo de unidade que significa único. Biblicamente, este tipo de unidade só é possível quando estamos cheios de Deus. Em João 17.23, Jesus usa o grego teleioo para orar ao Pai Deus dizendo assim: “... eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam perfeitos (ou aperfeiçoados) na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim”.
Nesta passagem, Jesus usa o termo teleioo para dizer que Deus em Cristo e o Cristo em nós somos um corpo único. A espiritualidade que nos move para a missão planetária é exatamente a espiritualidade que nos mantém perfeitamente unidos e cheios de Deus. Esta é a nossa soberana vocação (Filipenses 3.12-16), isto é, uma espiritualidade que nos move em Deus, para Deus e por Deus em direção ao outro (Efésios 4.1-6). Esta espiritualidade de alcance ao próximo é uma espiritualidade comunitária ― “comum-unitária” ― e, portanto, uma espiritualidade planetária que, à medida que nos movimentamos, nos enche de Deus e cada vez mais nos move em Deus “para” e “na” missão planetária. Jesus disse que este tipo de “perfeita unidade” (teleioo, transliterado do hebraico yachid) é que faz o mundo conhecer que Jesus Cristo é o enviado de Deus como prova do seu grande amor pelo mundo (João 3.16). Este grande amor atrai o mundo para si, porque é reconhecido naqueles que estão em Cristo e cheios de Deus.
Portanto, crentes que estão vazios de Deus vivem na vulnerabilidade espiritual e, consequentemente, sujeitos a estarem cheios de potestades. Os crentes que andam sob influência de potestades ― que na sua maioria são líderes ― vivem dando problema na igreja. Vivem sempre tendo ideias antagônicas, distorcidas, discordando de tudo, e então não conseguem entender e nem aceitar os projetos de Deus. São líderes ciumentos, problemáticos, rancorosos e diabolicamente polêmicos. Querem administrar a obra de Deus pela sua própria vontade; com a sua mente meramente humana cheia de técnicas burocráticas, porém vazia de Deus.
Entretanto, vemos na missão planetária um evangelismo cosmossocial, um evangelismo envolvente que nos mantém espiritualmente vigilantes, em que o “nós”, cheios de Deus, caminha em direção ao “outro” carente de Deus e de tudo. Este “outro” é antropossocial e por isso mesmo planetário, isto é, um ser de relações universalizadas. Aqui o “eu-nós” sociológico acontece, enche-se de Deus e torna-se sempre atraente ao “outro” também sociológico. E é neste sentido que a espiritualidade evangelizacional é envolvente. É envolvente porque se envolve com o “outro-comunidade” para envolvê-lo social e espiritualmente no corpo de Cristo.
Neste aspecto, os alcançados e alcançáveis recebem o cuidado fraternal (do grego adelfiki agápi sto ou phileo) com relação à assistência no campo da saúde, da educação, do alimento, da geração de renda e principalmente no campo da espiritualidade. Assim está claro que missão planetária é o cuidado holístico com o “outro” alcançável e alcançado. O homem holístico, portanto, é o “outro-comunidade” social.

3. UM EVANGELISMO ENVOLVENTE COMO MÉTODO DE ALCANÇAR PESSOAS PARA CRISTO
Em primeiro lugar, vale dizer que o evangelismo planetário é um evangelismo envolvente por se dedicar em cuidar de pessoas: do homem holístico, planetário. É um evangelismo envolvente porque é multiforme e relacional. Alcança o planeta-homem de todas as formas e de todas as maneiras. Nesta prática ou método, os evangelizadores ― isto é, a igreja como um todo ― se envolvem na comunidade e ao mesmo tempo eles envolvem a comunidade no processo de atividades e ações integralizadas do corpo de Cristo. A isso chamamos de macroevangelização,[9] porque contempla holisticamente todas as necessidades humanas no âmbito da comunidade local alcançada.
O processo de “envolver-se” e “envolver” da igreja-missionária é automático. É simultâneo. Quando, por exemplo, promovemos um almoço ou um jantar comunitário, entre amigos, estamos fazendo evangelismo envolvente. Uma conversa em família com não-crentes ou uma atividade de capacitação profissional também são um exemplo de evangelismo envolvente. Tudo aquilo que fazemos como igreja corpo social em Cristo no sentido de alcançar pessoas e de suprir as necessidades humanas é evangelismo envolvente.
As ações são multiformes. E se as ações são multiformes, o evangelismo é macro. O plano, portanto, é macro. É macro porque é envolvente. É relacional. Alcança as pessoas da comunidade naturalmente. David J. Hesselgrave sugere que sejam feitos contatos comunitários. E esclarece que estes contatos comunitários podem ser feitos de quatro maneiras primárias. A primeira delas é o que ele chama de contatos de livre associação, isto é, a interação normal e cotidiana com indivíduos na sociedade. A segunda é a iniciativa de afiliar-se a certos grupos locais organizados para promover os interesses comunitários, como, por exemplo, fazer parte de associações locais. A terceira é fazer levantamentos especiais na comunidade local. A quarta é usar os veículos de comunicações disponíveis na comunidade.[10] De maneira geral, participar de debates sobre os interesses e as necessidades da comunidade local é um jeito eficaz de fazer missão planetária e uma maneira inteligente de praticar evangelismo envolvente de excelência. Algo que gere satisfação no coração das pessoas.
Vale pontuar que o evangelho é “singularidade”, mas sua prática é “pluralidade” e universalizada. Isto porque alcança o homem integral. O evangelho é singular porque é único. Não há outro além dele. E em definitivo pertence a um único Deus e Senhor. O evangelho fez da igreja um corpo único em Cristo, perfeito em unidade, teleioo (João 17.23). Mas sua ação é “pluralidade” porque alcança todos os homens, todas as culturas, todos os “ethos” e “ethnos”. Alcança o “kosmos” social de todas as formas e maneiras. Afinal, é planetário. É planetário porque é um evangelho macro. E é macro porque é planetário. Por isso pode ser simbolizado por uma rede de pescar que, lançada às águas, alcança as mais variadas espécies de peixes.
E mais: o evangelho macro é interrelacional, carismático e solidário (cai na graça do povo). É o evangelho que opera no universo cosmossocial, geossocial-humano e antropossial. Por isso se trata de uma teologia do evangelismo que deve ser espontaneamente inclusivista. E deve acima de tudo ter resposta para todas as perguntas da humanidade. Deve administrar soluções para todos os problemas do homem holisticamente necessitado de Deus. Isto é, um homem que precisa de Deus em todos os sentidos. Nesta perspectiva, envolvimento é mais do que se envolver. Envolvimento é conhecer, conviver, cuidar e resolver. Só assim o pecador conhece quem é Deus e então entende que ele precisa de Deus.
Na signa da missão planetária, o passo ulterior ― muito diferente do evangelismo tradicional há anos praticado no Brasil ― é o evangelismo envolvente. Contam-se, aqui, experiências de relacionamentos com a comunidade externa, isto é, com as pessoas da comunidade local que ainda não confessaram Jesus Cristo como Senhor. No grego, a palavra perivállon equivale ao latim involvente (ou circuítus) e quer dizer meio circundante de determinada ação. Isto, no pensamento grego, é um relacionamento atrativo e convincente para mudança de vida. Neste aspecto o evangelho planetário é uma libertação intracomunitária. É um envolvimento intra-relacional com a comunidade social.
Na evangelização planetária, a igreja não se dirige à sociedade secular atual a partir de uma perspectiva monoconfessional. Não se entabula um debate evangelizacional de qualquer tipo com a opinião da sociedade como conjunto e fazê-lo a partir das referências exclusivas de uma religião, denominação ou confissão. O discurso evangelizacional é fundamentado unicamente nos princípios universais do Evangelho de Jesus, como Senhor da nossa salvação. Ele de fato é o Senhor da salvação daqueles que o seguem.[11]
Logo, o discurso confessional é meramente religioso, dogmático e não tem valor espiritual no contexto da abrangente universalidade do Senhorio de Cristo Jesus. Qualquer discurso meramente religioso está fora de contexto histórico, é deslocado, por desconhecimento da configuração inevitavelmente plural da sociedade atual na sua complexidade planetária. A missão planetária da igreja, então, dirige sua palavra e sua ação à sociedade plural, ao mundo hoje diferente e estranho e, enfim, à humanidade que mesmo na realidade local vive uma dimensionalidade global. Não é, portanto, um discurso evangelizacional provinciano ― limitado apenas às ameaças de sua própria confissão e levando uma visão conservadora denominacionalista ― que usa como referência seu próprio patrimônio simbólico. Mas é um discurso que se faz compreender pela sociedade plural, que para ser alcançada exige um método de evangelização multiforme, espiritual, relacional e envolvente. Ou seja, um evangelho que se importa e que por isso é “sal da terra” e “luz do mundo”.
A missão planetária, então, dialoga com a sociedade plural por via da sua consciência social e humanitária. Ela é operante junto à opinião pública. A partir dessa consciência social, que é humanitária e holística, logo se levantou a possibilidade de uma missiologia planetária que deveria transcender e integralizar ao mesmo tempo a identidade diversificada e multiforme do evangelho do nosso Senhor Jesus Cristo. Poderíamos chamar a missão planetária de missão mundial, adequando-a panoramicamente para toda a humanidade. Neste viés, caberiam harmoniosamente contradições de todas as dimensões cristãs. O poder no âmbito social, financeiro e corporativo seria extremamente maior, operante e mais abundante.
No grego, a tarefa de evangelizar o mundo é definida pela palavra euangelizõ, conforme Atos 5.42, e é traduzida como falar das boas novas de casa em casa, como um processo de comunicação que se faz todos os dias no templo, de lugar em lugar e de casa em casa. Isto nada mais é senão um evangelismo envolvente, comunitário e familiar ao mesmo tempo.

4. UMA ESPIRITUALIDADE INCESSANTE E TRANSMISSIONÁRIA
Quando o Senhor Jesus ordenou que os seus seguidores fossem por todo o mundo e pregassem o evangelho a toda criatura, Ele quis dizer que isso só seria possível com poder e autoridade espiritual. Esta autoridade está nele (Mateus 28.18). Em Atos (1.8) está escrito: “Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra”.
A espiritualidade da Grande Comissão está entrelaçada ao “Ide”. A Grande Comissão não parou ali nos dias de Jesus. Ela se estende até aos nossos dias. Em toda a história, a igreja parece não ter encontrado o cerne hermenêutico desta compreensão. Sempre faltou algo. Vemos que a espiritualidade do “Ide” ― principalmente no livro de Atos ― se processa em diálogos intercomunitários, intracomunitários e transcomunitários. Não é mais uma espiritualidade de tradição e palidez cultural ou doutrinária. Pelo contrário, é uma espiritualidade de novidade de vida. Uma espiritualidade de novo nascimento. Uma espiritualidade de vida abundante em Deus, com Deus e para Deus.
O evangelho, portanto, só funcionará se for assim: com uma espiritualidade [envolvente] de vida abundante. Sem vida abundante não há missão planetária. E sem missão planetária, isto é, não-focada no “outro social”, não há vida abundante. Pois estamos vivendo o tempo do esfriamento do amor. Ou teremos vida abundante para resgatar as pessoas desse mar de frieza afetiva ou então pouquíssimos [“delas” e de “nós”] entrarão no reino dos céus.
Sem vida abundante, repetimos, não há missão planetária. E sem missão planetária, centrada no “outro” e nas necessidades do “próximo”, não há vida abundante. Não há, portanto, espiritualidade incessante para que se execute a prática transmissionária. Quando há vida abundante, a fluidez do evangelho na vida do cristão é natural. Tudo acontece naturalmente.
No Maranhão, ainda não se criou, por exemplo, uma conferência inter-regional de missões. Mas há necessidade de que isto aconteça inclusive no âmbito interdenominacional. Isto quer dizer que a prática missionária ainda não teve uma espiritualidade criativa de experiências em diálogo aberto para o mundo, que envolva todo mundo que tem o coração voltado para Deus, independente da sua placa denominacional. Entretanto, é importante que a nossa espiritualidade estabeleça diálogos sobre a diversidade missionária, tendo como foco a realidade social das várias categorias de comunidades.
Para que haja este diálogo, nossa proposta é de que seja estabelecida no Maranhão uma conferência inter-regional de missões, onde se possam discutir as missões planetárias: focadas na realidade social do mundo. Trata-se de uma missão que transite por uma espiritualidade de serviços, que sempre possa caminhar em direção ao próximo no universo de suas necessidades plenamente humanas. No Maranhão, bem como em todo o nordeste brasileiro, o contexto da celebração missionária poderá conquistar despertamento e interesses de todas as denominações, quando não da maioria delas, para uma união de forças e ações em prol da obra missionária.
Por meio desta possível conferência, que deve acontecer anualmente, as iniciativas conjuntas deverão oficializar ações transmissionárias que possam ir além da busca de unidade das várias confissões de fé. Que possam ir, também, além do mero diálogo entre as diversas denominações cristãs na denúncia profética contra questões políticas dominantes como o neoliberalismo. E, ainda, crescer no aprofundamento de uma espiritualidade macroeconômica.
A prática missionária, inerente ao processo de ações planetárias, de certo modo mira as relações a partir de uma teologia missionária abrangente e acima de tudo libertadora ― que não tem nada a ver com teologia da libertação. ― Trata-se, aqui, de uma teologia missionária que é efetivamente um discurso aberto ao outro socialmente existente, e de práticas espirituais de tendência implicitamente inclusiva, em que se consiga aprofundar a espiritualidade planetária e transmissionária proposta. O ano atual é um bom momento para se pensar e trabalhar este debate, para ver se se consegue uma prática efetiva neste sentido.
Neste prisma, o caminho poderá avançar mais onde grupos multiculturais e indígenas mais autônomos possam se sentir representados. Para isto, as autoridades missionárias e eclesiásticas precisam assumir o processo de macroevangelização e impulsionar o processo de ações transmissionárias, passando pelo viés dialógico transcultural bem como intercultural. Na conferência de missões inter-regionais é possível se articular estes e outros processos da práxis missionária emergente.
As conferências missionárias, bem como os fóruns e outros movimentos, servirão para manter o debate e a criatividade nas ações. As diversas entidades de missões se manifestam com o objetivo de diálogo e acabam fomentando o desejo e as atividades no âmbito de uma espiritualidade producente e interconectada às necessidades do indivíduo que ao mesmo tempo é sujeito das ações transmissionárias, haja vista que ações isoladas são pouco produtivas. De acordo com o “Ide” de Jesus, Deus quer que o corpo de Cristo seja uno e, nesta unidade, tenha poder de ação em nível macro. Este tipo de união é planetário. Isto é, uma união planetária em termo de organização e poder de ação na busca contínua e criativa por resultados no contexto de uma espiritualidade efetiva e incessantemente missionária.
É importante pontuar que, concernente ao processo de comunicação registrado em todo o livro de Atos, a ênfase peculiar da natureza missionária se concentra nas funções e atividades missionárias planetárias, não com esta nomenclatura, claro, mas de todas as maneiras com foco na plenitude das necessidades humanas. Os apóstolos anunciavam e falavam (laleõ ― Atos 4.1, 31), evangelizavam de casa em casa (euangelizõ ― Atos 5.42), ensinavam o povo (didaskõ ― Atos 5.42), proclamavam e pregavam (kerussõ ― Atos 4.2; 8.5, 6), anunciavam publicamente (katangellõ ― Atos 4.2; 13.5, 38; 15.36; 17.3), testificavam solenemente (diamarturomai ― Atos 2.40; 28.16, 23. Este termo aparece em todo o livro de Atos), davam testemunho (martureõ ― Atos 1.8), arrazoavam, argumentavam e discutiam (dialegomai ― Atos 17.2, 3, 17; 18.4, 19; 19.8-10; 24.24, 25).
Logo, o evangelho da missão planetária foca o homem no âmbito antropossocial (compreendendo sua cultura social) e no âmbito geossocial (compreendendo a sua ação na terra no seu aspecto formal, fisiológico, ecológico, biológico, produtivo, populacional, político etc.). Nesta perspectiva, a missão planetária acontece na lógica da igreja corpo de Cristo (espiritualidade ― abundante, cheia de Deus) versus igreja corpo social em Cristo (funcionalidade ― de alcance para fora). Logo, a lógica da igreja missionária é que ela é comunidade de poder, anunciando as boas novas com o acontecimento dos sinais que são operacionalizados pelos que creem, ou os acompanharão na medida da sua fé (Marcos 16.17, 18).
Definitivamente, a lógica da missão planetária na prática do evangelismo envolvente é a seguinte:
a)     Igreja corpo de Cristo (é espiritualidade);
b)     Igreja corpo social em Cristo (é funcionalidade).
Está claro que uma igreja espiritual é efetivamente evolvente porque se entrega à funcionalidade social no corpo de Cristo, da mesma maneira que uma igreja envolvente é espiritual porque exercita efetivamente os deveres espirituais no corpo social em Cristo. A ética da espiritualidade, então, se transforma naturalmente na ética da funcionalidade, na relação efetiva da igreja com a comunidade. E aí o evangelismo é planetário porque penetra na universalidade do “planeta-homem” em todos os sentidos, alcançando-o integralmente, em todo o seu universo existencial.[12]

5. FOCO NA SALVAÇÃO DE ALMAS. ALMAS SÃO PESSOAS
O discurso missionário para o mundo de hoje perpassa por um diálogo aberto no campo das ciências das religiões, da sociologia, da antropologia e da teologia que miram o fato de que, nos dias atuais, há um certo descrédito no que concerne à maioria das sociedades em relação às religiões. Observa-se que as sociedades seculares seguem por bases cada vez mais fundamentadas em inovações tecnológicas, mudanças rápidas e comunicação ultra-avançada. A igreja cristã, por vezes, normalmente se mantém fiel às tradições e, por isso, não adequa as suas linguagens à realidade do mundo contemporâneo.
Neste tom, algumas frentes missionárias seguem a orientação metodológica das suas denominações, porque, geralmente, há um código doutrinário que as impedem de aceitar o novo. Ocorre que as pessoas nas sociedades seculares seguem a linguagem das inovações tecnológicas. Neste sentido, a comunicação cristã perde. Mesmo os crentes leigos seguem nesta direção. Veja que, na sua maioria, os cultos de hoje em dia são frios, sem avivamento espiritual e de pouco compromisso com a fé genuinamente cristã. Os relacionamentos são fragilizados, indiferentes. E isso repercute na estrutura social-espiritual do corpo de Cristo.
Nossas experiências de evangelização registram a necessidade de se ter sensibilidade e capacidade espiritual para inserir as pessoas no processo da salvação. O bom senso é a compreensão quanto à forma de se relacionar agradavelmente com as pessoas. Ou seja, saber persuadi-las ou ensiná-las sobre a necessidade espiritual que cada ser humano tem de aceitar a fé salvadora. Cada pessoa é um projeto evangelístico, haja vista que cada uma tem sua individualidade; tem sua própria maneira de pensar e agir. Como operadores do evangelho, temos que ver cada indivíduo, cada pessoa, como sujeito. Temos de alcançá-la com a ação transformadora do Evangelho. Envolver pessoas no plano da salvação é um processo. Um processo que exige muito da nossa comunicação, das nossas técnicas e principalmente da espiritualidade.
Gosto muito da hermenêutica que o teólogo brasileiro Leonardo Boff aplica para João 3.8. Ele diz que o Espírito Santo enche o universo e a face da terra. Sopra onde quer e, portanto, conduz o missionário para onde quer. O missionário sempre chega mais tarde, sempre chega depois, uma vez que, antes dele, “lá estava o Espírito Santo, na história e no coração dos povos”.[13]
É um jeito divertido de o autor dizer que o Espírito Santo despertou as dimensões humanas em sua integralidade da criação:
“o amor, o cuidado, a solidariedade, a sensibilidade por tudo o que vive, a capacidade de captar as mensagens que nos vêm de todos os lados do universo, da natureza, da terra e de cada pessoa humana, o sentido de colaboração e de sofrer pelos outros, a força de gerar e de cuidar do mínimo sinal de vida, o sentido da beleza e da estética, o encantamento, a exaltação, a alegria pura e inocente e sua capacidade de capitar o invisível e de sentir Deus a partir do corpo”.[14]
Há uma ética de vida humana aí. Surge a necessidade missionária de encontrar a coerência adequada no ethos vivido e formulado com relação ao valor decisivo para a realidade humana. Não há lógica missionária sem a visão do ethos ― das várias culturas ― na devida funcionalidade da missão planetária na dimensão ética, ontológica e deontológica da vida humana.
Fazendo missões, pois, como testemunho da história e na história é o que sucede. Antes da sua morte, Paul Tillich costumava dizer que, hoje, não se pode estar em busca da verdade. Não pode sequer conhecer-se a si mesmo nem conhecer sua religião, menos que conheça a de outros. A mesma coisa dizia Paul Knitter.
Quando fazemos missões de verdade, focadas na salvação de almas, centradas no próximo e contemplando as suas necessidades, normalmente contrariamos a teologia sistemática em muitos pontos. Isto porque a teologia sistemática, pensada inicialmente por Santo Agostinho, parece limitar Deus na sua ação e no que Ele é. O problema começa quando ela, a teologia sistemática, tenta conceituar Deus, tenta defini-lo na sua infinita eternidade. Ao passo que Deus não se define pela intelectualidade humana. Ele mesmo se auto-define. Ele é “o Grande Eu Sou” e/ou “Eu Sou o Que Sou”. Isto significa que Ele “É” na plenitude eterna do “EU SOU”.
Quando a teologia sistemática tenta definir Deus, ela simplesmente quebra o princípio da auto-definição dele enquanto Criador Eterno, Infinito. Portanto, a definição humana de Deus não é válida porque Ele mesmo se auto-define.
Diante disto, a prática missionária verdadeiramente bíblica alcança o homem na sua dimensionalidade social e antropológica de uma maneira tal que vai além daquilo que a teologia sistemática define. Entendemos que a experiência e o contato da igreja com a sociedade plural transformam a comunidade alcançada e sua vivência social e, assim, direcionam tal comunidade a um novo modo de compreender o panorama do evangelho e, obviamente, entender a necessidade de se inserir no mistério da salvação. Este mistério, como disse Tillich, estará clarificado como discurso a partir de novos métodos de evangelização.
Categorias confessionais não servem para salvação de almas. Não servem porque, além de meramente religiosas, não se constituem um ambiente com visão de um evangelho planetário. É um ambiente muito doméstico, restrito, que desconhece a pluralidade da cultura do mundo. Desconhece as regras e os direitos do pluralismo social da humanidade. E não colabora com a teologia missionária dos tempos atuais, que efetivamente deve estar no nível das condições reais das sociedades do mundo atual. A igreja corpo de Cristo se auto-reconhece como igreja corpo social em Cristo e, aí, trabalha focada na cultura do mundo; focada em pessoas e nas suas comunidades bem como nas suas necessidades.
A partir desta consciência planetária e transmissionária a igreja brasileira do século XXI poderá discutir e levantar a possibilidade de propor uma prática missionária de absoluta relevância universal desvinculada da tradição que bitola a fé e a espiritualidade em nível de evangelização. Trata-se de uma visão missionária mundividente e, portanto, adequada a toda a humanidade e sem vínculo específico a nenhum segmento religioso particular. Estamos falando de uma missiologia planetária capaz de absorver um diálogo aberto a todas as culturas do mundo. Capaz de abranger a todas as pessoas inseridas exatamente nessa sociedade plural.
Aqui há um caminho que é interior em cada um de nós. O evangelho das boas novas externalizou o Espírito Santo que agora habita em cada um de nós e se encontra irradiante, atuando no cerne do anunciamento das boas novas da salvação no meio das culturas dos povos. Ele é o grande responsável de levar o nome do Senhor Jesus Cristo através das ações missionárias a cada gente. Há uma fonte que jorra as primícias do evangelho da salvação para dentro das pessoas. Então, logo é possível mergulhar para dentro do nome de Deus por meio da ação do Espírito Santo que se move em nós, age em nós e que, por meio de nós, leva as pessoas a encontrarem a vida e a nascerem de novo: da água e do Espírito (João 3.3-7). Este fenômeno do novo nascimento nada mais é senão a ação do Cristo por meio do Espírito de Deus que age em nós em favor do outro socialmente humano, carente e necessitado de Deus. E ele encontra, na pessoa do Cristo, o Deus Salvador.
Salvação é a manifestação da graça que gera arrependimento em nosso coração e nos liga a Deus por meio do perdão que recebemos ao confessarmos que Jesus é o Senhor, ressuscitado por Deus dentre os mortos (Romanos 10.8, 9, 10). Este é o maior ato de justiça que a história já protagonizou e produziu.

6. MISSÃO PLANETÁRIA, EVANGELISMO ENVOLVENTE E FUNÇÃO SOCIAL
Não tem como falar em missão planetária e evangelismo envolvente sem mencionar o discurso do apóstolo Paulo em Efésios capítulo 4 e versículos de 1 a 6, onde ele recomenda à comunidade cristã efesiense a andar de modo digno da vocação à qual foi chamada, solicitando que os crentes andassem na missão, fazendo a boa obra “com toda humildade e mansidão, com longanimidade, suportando uns aos outros em amor” (v. 2).
O versículo 3 fala do esforço que todos os cristãos deveriam fazer diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz. Paulo justifica isto dizendo que “há somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança” da vocação (v. 4), porque “há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (vs. 5, 6).
Isto nada mais é senão espiritualidade efetivamente relacional e, portanto, ação evangelizacional envolvente, em que se verifica a concretude da função social da igreja corpo de Cristo que faz dela corpo social em Cristo e, portanto, comunidade de poder.
No livro a A Igreja Cidadã, faz-se saber que, por muito tempo, a igreja não se configurou como um foco do interesse da gestão eclesiástico-social e de uma pedagogia evangelística que pudesse educar o povo numa espiritualidade envolvente de alcance para fora. Embora constituindo-se no espaço específico que os cristãos reservaram para veicular o conhecimento do Evangelho da Salvação ― em que se julga importante transmiti-lo à sociedade de indivíduos carentes de Deus e, por isso, necessitados do novo nascimento ― a igreja permaneceu estritamente verticalizada. Agora, com o advento da modernidade e, portanto, das transformações ultramodernas das sociedades que unem o “local” ao “global”, as novas realidades trazem o papel da igreja para o centro do debate sobre a função social do corpo de Cristo. Ou seja, este debate acontece ressignificando o sentido de uma reflexão sobre a função social da igreja na formação da identidade do cidadão do céu.
Então, o debate sobre missão planetária tem por intenção trazer a lume a relação entre a função social da igreja corpo de Cristo, a gestão eclesiológica, a prática do evangelismo envolvente e a arte educativa dos princípios do evangelho de Jesus como aprofundamento da salvação, buscando compreender o mistério da vida eterna como bem supremo para a humanidade pecadora alcançável pela própria magnitude do evangelho de Cristo.
Ao refletirmos sobre a função social da igreja, a primeira coisa que devemos perguntar é: que articulação existe entre igreja e sociedade ― ou, mais especificamente, entre igreja e cidadania ― a ponto de fazer dela agente de transformação da realidade social a partir de sua prática evangelizadora?
Bem, refletiremos o seguinte: se toda a sociedade se caracteriza pela coexistência de várias culturas, tradições e linguagens, a evangelização tem significação pluralizada e particular ao mesmo tempo. A igreja, de fato, institui e trabalha o evangelho do nosso Senhor Jesus Cristo no contexto da cidadania. A igreja é o ambiente onde as pessoas deixam de pertencer exclusivamente a uma cultura particular para se integrarem numa comunidade plural, mais ampla, em que os indivíduos ― como sujeitos alcançáveis e passíveis de transformação ― estarão reunidos não por vínculos de parentesco ou afinidade, mas pelo chamado por via do evangelho para serem inseridos na simplicidade da vida abundante e, portanto, por via de uma consciência planetária, para viverem em comum. Viver em comum significa viver em comunidade (ou viver com-unidade).
A igreja, desta maneira, institui, em outras palavras, a coabitação de pertencimento de indivíduos de diferentes tradições e culturas sob a autoridade de um mesmo fundamento do evangelho do reino do único Senhor, Salvador e Rei: Jesus Cristo, o Justo.
Não se pode negar que já há, sim, uma estreita relação entre algumas ações da igreja com a sociedade, em matéria de convivência social. Mas não existe, ainda, nenhum tipo de articulação instituída entre igreja e a cidadania que se possa louvar ou celebrar como missão planetária. Ou seja, é no exercício da convivência e/ou da espiritualidade envolvente entre a igreja e os indivíduos da sociedade plural, de diferentes culturas e linguagens, que acontecem o alcance e a transformação dos sujeitos no contexto da salvação. É aqui que o cuidar planetário ocorre e é holístico. Afinal de contas, o evangelho planetário fala para o indivíduo plural, pertencente a uma comunidade plural. Plural porque agora é global.
Com esta visão planetária, a igreja renasce com uma nova noção de mundo, trabalha a contextualização de sua comunicação e linguagem para então alcançar o indivíduo pertencente a uma sociedade globalizante de cultura global transitória ― indivíduo este inserido numa comunidade plural, que transita na diversidade de consciência e sentidos.
Estamos falando de sociedades complexas ― ou da chamada sociedade do conhecimento ― em que nesse contexto o papel da igreja tende a assumir uma determinada importância sem precedentes. Neste ponto, deve-se considerar também o fato de que a igreja é uma instituição social que existe historicamente. Por muito tempo ela pensou a sociedade no âmbito de seus modelos funcionais, porém sempre se equivocou quanto ao método de evangelização. Ela se preocupou em cuidar mais de si própria ― falar para si mesma ― do que com o “ide a todo mundo” e alcançar “a toda criatura” (Marcos 16.15). “Criatura” no amplo sentido do termo.
Sempre temos dito que a prática missionária planetária consiste na concretização das condições que asseguram a realização do trabalho evangelístico prático. Estas condições não se restringem ao estritamente “teológico/pedagógico”, já que a igreja pode e deve cumprir funções que lhe são disponibilizadas pela sociedade concreta que, por sua vez, se apresenta como sociedade constituída por classes sociais cujos interesses são antagônicos entre si.
É neste nível, finalmente, que o apóstolo Paulo aconselha em Efésios 4 que os crentes devem se esforçar “diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz” (v. 3), uma vez que “há somente um corpo e um Espírito” (v. 4) e, também, “há um só Senhor, uma só fé, um só batismo” (v. 5). Isto acontece, diz Paulo, porque há “um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (v. 6).
Paulo está dizendo com isto que a prática missionária e evangelística deve ser planetária e, portanto, envolvente porque tem em torno de si condicionantes sociais, geopolíticas, antropológicas, econômicas e espirituais que, enfim, configuram diferentes concepções de homem e de sociedade que estabelecem, aí, uma comunidade plural. Percebem-se, então, diferentes pressupostos acerca do papel da igreja nas suas relações com os sujeitos sociais que a levam a pensar em métodos e técnicas de evangelização que sejam estratégicos para alcançar cada indivíduo no meio da sociedade pluralizada de cultura global. Isto faz da igreja corpo de Cristo igreja corpo social em Cristo com absoluta função social para alcançar a todos num mundo que é complexo e, portanto, observável sob diferentes aspectos.

7. CONCLUSÃO: COLETIVIDADE E ALCANCE PARA FORA
O corpo de Cristo é coletivo. Isto quer dizer que ele é feito de relacionamentos entre pessoas. Em todo o Novo Testamento, a igreja corpo de Cristo sempre foi um corpo espiritual-social em movimento, buscando relacionamentos com o próximo. Por esta razão Jesus disse “Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros..., e assim conhecerão todos que sois meus discípulos” (João 13.34, 35).
Jesus parece determinar, aqui, que o verdadeiro método para evangelizar o mundo é o amor. O amor une os salvos no corpo de Cristo, mobiliza-os e atrai pessoas do mundo para serem inseridas no contexto do evangelho onde, então, elas são discipuladas e cuidadas pela mobilização e consciência do mesmo amor.
A igreja é um corpo em movimento. Por isso as funções sociais que cabem a ela desenvolver são dinamizadas através de relações entre as classes sociais. Aqui é interessante considerar a contribuição de um discipulado fora dos portões da congregação que resultam em diferentes concepções do papel da igreja enquanto grupo social e, consequentemente, de sua função espiritual-social na construção do sujeito social como cidadão do reino de Deus e também cidadão do mundo.
Na verdade, discipular ou pastorear pessoas ainda não-convertidas, por meio de relacionamentos e ações envolventes, é um tema que ainda não chegou aos interesses da igreja, mas que é profundamente necessário nos dias atuais. De fato, a função social da igreja estabelece sua magnitude espiritual na arte de evangelizar o mundo e deve ser canalizada em torno do debate acerca da missão planetária. Aqui é possível identificar papéis trazidos a lume para a igreja nas suas diferentes ações evangelizadoras.
Nesta perspectiva, então, a função social da igreja, praticada do lado de fora dos portões, consiste na preparação dos não-convertidos para entenderem a sua carência de Deus e a necessidade de confessar Jesus como Senhor e Salvador. O compromisso social da igreja, enfim, é com os indivíduos de uma sociedade plural agonizante mergulhada em um mar de situações-problemas, estando aí ao mesmo tempo suas demandas sociais, existenciais e espirituais.

Referências bibliográficas
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ATTALI, Jacques. Uma breve história do futuro. São Paulo: Novo Século, 2008.
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GETZ, Gene A. Igreja: forma e essência. São Paulo: Vida Nova, 1994.
HESSELGRAVE, David J. Plantar igrejas: um guia para missões nacionais e transculturais. São Paulo: Edições Vida Nova, 1995.
MORAIS, Ione. Conhecendo para guerrear. Goiânia: Kelps, 2009.
PIPPERT, Rebecca Manley. Evangelismo natural: um novo estilo de comunicar sua fé. São Paulo: Mundo Cristo, 1999.
SOAREZ, Battista. A igreja cidadã: o evangelho real, socialmente inserido e socialmente responsável. Curitiba-PR: AD Santos Editora, 2018.
VIDAL, Marciano. Para conhecer a ética cristã. São Paulo: Paulus, 1993.
VIGIL, José María (org.). Por uma teologia planetária. São Paulo: Paulinas, 2011.


[1] Pr. Battista P. Soarez. Escritor, professor, jornalista, pedagogo, psicopedagogo, teólogo, sociólogo e assistente social. Pós-graduado em Marketing (UCAM/RJ) e em Comunicação e reportagem (UEMA), é autor de vários livros e artigos. Atualmente é o secretário de missões da COMADEMA (Convenção da Assembleia de Deus no Estado do Maranhão).
[2] Isto também pode ser chamado de antropogeografia. A antropogeografia ou geografia humana trata de todos os feitos terrestres resultantes da atividade do homem na complexidade social do mundo, em que obviamente a igreja está inserida.
[3] Marcelo Barros. A frágil transparência do Absoluto. Teologia para uma espiritualidade transreligiosa. In José María Vigil. Por uma teologia planetária. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 60.
[4] Russell Jacoby. O fim da utopia: política e cultura na era da apatia. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001. Lendo este autor, percebem-se fragmentos ínfimos que podem levar a percepções mais agudas e, a partir daí, gerar uma noção mais abrangente da realidade social e das suas expressões sociais.
[5] David J. Hesselgrave. Plantar igrejas: um guia para missões nacionais e transculturais. São Paulo: Edições Vida Nova, 1995, p. 130.
[6] Battista Soarez. A igreja cidadã: o evangelho real, socialmente inserido e biblicamente responsável. Curitiba-PR: AD Santos Editora, 2018, p. 222-245.
[7] Ortopraxia é um termo usado no livro “A Igreja Cidadã” (Battista Soarez. A Igreja Cidadã: o Evangelho real, socialmente inserido e biblicamente responsável. Curitiba-PR: AD Santos Editora, 2018) para designar o sentido de correção de deformações sociocomunitárias. O autor toma o termo emprestado da medicina e o aplica na realidade social-comunitária.
[8] Gene A. Getz. Igreja: forma e essência – o corpo de Cristo pelos ângulos das escrituras, da história e da cultura. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 94.
[9] Battista Soarez. A igreja cidadã: o evangelho real, socialmente inserido e biblicamente responsável. Curitiba-PR: AD Santos Editora, 2018.
[10] David J. Hesselgrave. Plantar igrejas: um guia de missões nacionais e transculturais. São Paulo: Edições Vida Nova, 1995, p. 137.
[11] Rebecca Manley Pippert. Evangelismo natural: um novo estilo de comunicar sua fé. São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 35-39.
[12] Raimon Panikkar. Teologia da libertação e libertação da teologia. In: José María Vigil. Por uma teologia planetária. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 173-179.
[13] Leonardo Boff. Cristianismo: o mínimo do mínimo. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, p. 61.
[14] Idem, p. 61.