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sexta-feira, 10 de junho de 2022

ENTREVISTA: PR. BATTISTA SOAREZ | UM AUTOR DE MUITAS IDEIAS | Por Marina Sousa

Um autor de muitas ideias (parte I)
O escritor, jornalista e pastor maranhense Battista Soarez tem escrito livros e artigos de impacto social. Sua obra A Igreja Cidadã já foi finalista em prêmio nacional de literatura, citada em dissertação de mestrado e até em pesquisas estrangeiras.

 

Por Marina Sousa
(Jornalista da Assembleia Legislativa do MA)

 

Pr. Battista Soarez, escritor e jornalista | Fonto: Roney Costa

AOS 54 ANOS DE IDADE, o escritor, jornalista, teólogo e pastor maranhense Battista Soarez tem contribuído com o desenvolvimento da igreja cristã brasileira através de suas ideias impressas em livros, artigos e ministrações de aulas universitárias e pregações na igreja evangélica, principalmente para pastores e líderes. Nascido em Mirinzal, município da baixada maranhense, o autor tem influenciado pessoas e igrejas na área de missões e evangelismo de impacto. Seu livro A Igreja Cidadã tem percorrido vitrines e prateleiras do Brasil e do mundo. Muitos projetos missionários, evangelísticos, sociais e trabalhos acadêmicos têm sido inspirados na obra de Battista Soarez. Nesta primeira entrevista, ele começa falando da sua carreira e da sua obra mais conhecida. E deixa patente que não escreve pensando em dinheiro. Mas na qualidade da escrita para alcançar pessoas e contribuir com a construção de “um mundo mais justo e melhor”. Vamos à entrevista.

LEITURA LIVRE Todo mundo tem uma ideia de si próprio. O senhor é escritor, jornalista, professor, pastor e dono de uma inteligência admirável. Como o senhor se autodefine?

BATTISTA SOAREZ — Olha, eu me acho um sujeito normal como qualquer outro. Apenas sou um indivíduo inquieto com o mundo e as pessoas que protagonizam os cenários dos caminhos por onde ando. Na igreja, nas empresas por onde trabalhei, entre grupos de amigos... enfim, sempre vejo alguém se comportando ou fazendo algo que me surpreende. Queria viver num mundo mais justo. Conviver com pessoas mais equilibradas e mais existencialmente normais. Mas, a cada dia, me surpreendo com atitudes e comportamentos de indivíduos que deveriam agir diferente e, assim, contribuir para se ter um mundo melhor. Sobre a inteligência, não vejo que sou dono de nada. Por trás de tudo, há um Deus Criador. Se Ele é o Criador, então Ele, sim, é o dono de tudo. Somos apenas veículos dos dons e da vontade dEle.

Livro A Igreja Cidadã, publicado pela AD Santos Editora

L. LIVRE Em 2009, fizemos uma entrevista publicada no Jornal Pequeno, de São Luís, quando da publicação do seu livro A Igreja Cidadã, publicado pela editora Arte Editorial, de São Paulo. Já faz bastante tempo. O que mudou de lá para cá?

B. SOAREZ — É! Faz tempo. Já se foram 13 anos. Mudou muita coisa nesse espaço de lá para cá. Hoje, principalmente com o advento da pandemia da COVD-19, a configuração do mundo mudou. Na política, na educação, na economia. E até na igreja.

L. LIVRE O senhor se dedicou ao jornalismo desde quando era ainda muito jovem. Eu me lembro disso, porque trabalhamos juntos no Jornal de Hoje. Quem nasceu primeiro? O escritor ou o jornalista?

B. SOAREZ — (Risos...). Os dois começaram numa idade muito tenra. Mas acho que o escritor foi mais precoce porque desde os meus 12, 13 anos de idade eu já procurava burilar bem as palavras no rabiscar das primeiras letras nos meus cadernos escolares. Inclusive, as cartas feitas às namoradinhas da época já eram verdadeiras peças literárias. Caprichava nas palavras. Procurava conquistá-las de alguma maneira, assim como hoje faço com meus leitores. Já no jornalismo eu comecei aos 17 anos. Só que jamais imaginava que nalgum dia iria tomar a dimensão que tomei como escritor e jornalista.

L. LIVRE Hoje, aos 54 anos de idade, o senhor se sente realizado como escritor e jornalista?

B. SOAREZ — É o que eu amo fazer. Foi a maneira pela qual Deus me escolheu para alcançar as pessoas que precisam de mudança de mente e transformação de vida. Portanto, se estou sendo útil para as pessoas, estou realizado.

L. LIVRE O senhor ganha muito dinheiro com o ofício de escritor?

B. SOAREZ — Essa é a pergunta que mais eu ouço das pessoas na rua, inclusive dos amigos. Mas, olha, não escrevo pensando em dinheiro. Quando estou escrevendo, me dedico a pensar nos meus personagens, quando a atividade do momento é um romance ou um conto. Concentro-me na realidade do tempo presente, passado e futuro quando, por exemplo, estou escrevendo um ensaio. Penso na combinação harmoniosa de frases e palavras, quando escrevo um poema. Portanto, o dinheiro, para mim, é uma consequência natural daquilo que faço com amor, por prazer, dedicação e com muita responsabilidade. Mas nunca ganhei dinheiro com livros. Se em algum dia tiver que ganhar dinheiro com livro, será consequência natural daquilo que faço por amor e qualidade.

L. LIVRE Além de escritor, jornalista e professor universitário, o senhor tem outras aptidões, profissões e formações acadêmicas como, por exemplo, assistente social, sociólogo, teólogo e pedagogo. Como é administrar essa versatilidade de conhecimento em uma pessoa só?

B. SOAREZ — Eu coloco tudo no mesmo bojo. No mesmo pacote, para ser bem claro. Como assistente social, procuro estudar, analisar, interpretar e entender as expressões multifacetadas da questão social para intervir na realidade social que, com suas mazelas, atormenta, oprime e destrói a vida dos indivíduos em situação de vulnerabilidade social. O serviço social me completa porque me leva a dialogar com outras áreas como sociologia, psicologia, história, economia, ciência política, antropologia, filosofia, direito, ética e estatística. Portanto, como assistente social, me sinto um cidadão sociopolítico capaz de criticar e intervir nas muitas retrações desse conjunto de desigualdades existente no antagonismo entre a socialização da produção e o poderio privado nesse injusto universo de capital e trabalho. E, para isso, a minha ferramenta é o instrumento científico multidisciplinar das ciências humanas e sociais. Para mim, tudo isso me realiza e me faz feliz intelectual e profissionalmente.

L. LIVRE E as outras profissões?

B. SOAREZ — Como disse, ponho tudo num bojo só. Como pedagogo, estudo a educação, o processo de ensino e a aprendizagem humana tanto individual como coletivamente. Como sociólogo, procuro compreender a sociedade, seus padrões de relações sociais, a interação social dos grupos e a cultura da vida cotidiana. E também a ordem social e sua evolução. Como psicoterapeuta (pois sou psicopedagogo e psicanalista), percorro os caminhos do processo dialético para ajudar os indivíduos no âmbito dos problemas de saúde mental. Como teólogo, mergulho na existência e na espiritualidade humanas para explicar os atributos de Deus e suas relações com os seres humanos, sempre levando em conta as implicações no âmbito das cinco inteligências humanas que são a inteligência biológica, a inteligência emocional, a inteligência psicológica, a inteligência cognitiva e a inteligência espiritual. E como jornalista, eu investigo os fatos, coleto e analiso as informações, levando em consideração a interação de eventos, fatos, ideias e pessoas que afetam a sociedade em seus mais diversos graus. Então, tudo isso se aplica à ocupação, aos métodos de coleta de dados e à organização de estilos literários a que me dedico. Já como escritor, eu pego tudo isso, nas palavras escritas com inspiração, técnicas e estilos para pensar e comunicar minhas ideias de acordo com a hermenêutica pedagógica, social e literária do tempo presente para contribuir com o desenvolvimento da cultura da sociedade que presenciamos no seu transcorrer cotidiano. Há uma história que acontece todos os dias e precisamos acompanhar e observar os fatos e, assim, registrá-los para as gerações futuras.

L. LIVRE E o senhor ainda cursou direito, não é isso?

B. SOAREZ — Sim. Estudei as ciências jurídicas e ainda estudo. Aliás, eu estudo todos os dias as áreas em que me formei e pratico minha atuação. E acho que ainda não atingi 0,1% da minha capacidade de aprender.

L. LIVRE Sério?

B. SOAREZ — Verdade! O mundo é muito complexo. Eu gostaria de ter nascido numa época em que as editoras, o governo ou alguma instituição me pagassem só para eu estudar, palestrar, ministrar aulas e escrever ideias de desenvolvimento e, assim, contribuir com as mudanças sociais, a justiça e as estruturas da sociedade. Mas vivo em um país de cultura mental medíocre em que a gente não depende só de inteligência e de ter competência para ser valorizado. É preciso sorte, saber se livrar dos falsos amigos, se proteger dos invejosos e ter estômago forte para suportar “puxar saco” de políticos e poderosos. Um dia desses alguém do alto escalão do governo Flávio Dino me perguntou o porquê da injustiça de eu, ao longo da minha carreira, não ter sido chamado por nenhum governo para compor a estrutura político-administrativa do estado, já que minhas ideias têm sido utilizadas. E eu, então, respondi que não depende de mim. Depende daqueles que me conhecem e sabem do que eu sou capaz. Eu não sei “puxar saco”, não sei bajular ninguém e muito menos sair por aí me oferecendo para trabalhar e ajudar o estado a se desenvolver.

L. LIVRE Inclusive, lembro que, em 2008, fiz uma entrevista com o senhor na Rádio Esperança FM e o senhor falou que os presídios, as penitenciárias, deveriam ser utilizados como espaço de reeducação e aprendizagem para, de fato, ressocialização dos detentos. A SECOM do estado estava gravando nossa entrevista. No dia seguinte, a superintendência do governo ligou para a rádio pedindo seu telefone para pegar mais informações sobre suas sugestões. Como foi isso?

B. SOAREZ — Sim. Ligou. E eu lembro perfeitamente. A superintendente da SECOM do estado me ligou dizendo que a minha entrevista tinha sido gravada e se eu concordaria em lhe repassar mais informações sobre as minhas ideias. Perguntou se eu cobrava para isso. Eu disse que não cobrava nada. Ela perguntou se eu, então, concordaria em participar do projeto, remunerado pelo estado. Eu disse que concordaria e que, para mim, seria uma honra. E aí ela perguntou, também, se eu poderia lhe adiantar algumas ideias. Passamos mais de duas horas no telefone. Eu dando ideias e ela anotando tudo. Na verdade, o estado já tinha algumas atividades nesse sentido, mas muito remotas. A partir daquele momento, foi que nasceu a ideia de fazer o Plano de Educação nas Prisões para todo o Estado, concluído em 2015. Como você disse, nossa entrevista e o telefonema do estado foram em 2008.

L. LIVRE E aí? O senhor foi chamado pelo governo do estado para participar do projeto?

B. SOAREZ – Em nenhum momento. Até hoje espero.

L. LIVRE O senhor nasceu na baixada maranhense? É isso?

B. SOAREZ — Sim. Nasci em Mirinzal, num lugarejo chamado Venturosa. Que, aliás, será tema de um romance meu no futuro. Mas me criei em Santa Helena. Porque, quando eu tinha dois anos de idade, meus pais se mudaram para Santa Helena. Na verdade, meu pai era de Pinheiro, terra do meu avô Francisco Soares, que era filho de um jurista português, Antônio Marcolino Soares. Formado em Direito, Antônio Marcolino, meu bisavô, veio de Portugal para ser operador do direito no Brasil colônia. Ele foi o primeiro promotor de justiça da cidade de Pinheiro e, neste município, teve muitos filhos com mulheres diferentes. Meu pai me contou que todos os filhos que ele tinha colocava o sobrenome “Soares”. E, assim, ele povoou a cidade e aquela região com a família Soares. Era um homem namorador, mas muito justo. (Risos...).

L. LIVRE Seu pai ainda é vivo?

B. SOAREZ — Não. Faleceu em 2002, em Santa Helena, devido a problemas de diabetes e AVC.

L. LIVRE Há vários nomes talentosos na literatura e no mundo jurídico que vêm da baixada. O senhor tem orgulho de ser um baixadeiro ilustre, que tem levado a imagem do Maranhão, por meio dos seus livros, ao Brasil e ao mundo?

B. SOAREZ — Particularmente, não gosto muito da palavra “orgulho”. Isto porque não tem muito a ver comigo. Mas tenho a maior satisfação e felicidade de ser originário da baixada maranhense. Minha região é linda. Verdejante. Tem flora e fauna de dar inveja. Tem muita fartura de água, terra boa para se plantar de tudo. Tem muito peixe, animais silvestres, pássaros e, portanto, uma biodiversidade incrível. Se eu pudesse, moraria lá o resto da vida, escrevendo meus livros com muita felicidade. As regiões campestres do Maranhão são inspiradoras. Penso que todo escritor e poeta por vocação gostariam de morar na baixada maranhense, navegando de canoa, barco, andando a cavalo, pescando de anzol e outros instrumentos em mares, lagos, lagoas, rios e igarapés. Isso não tem preço. Muito linda a minha região. Vale lembrar que o escritor e cineasta José Louzeiro, autor do romance Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, era de Cururupu, cidade vizinha da minha Mirinzal.

L. LIVRE Seu livro mais conhecido é o A Igreja Cidadã? Foi até citado por empresas estrangeiras ligadas à ONU em pesquisas sobre organização de comunidades sustentáveis para produção de biocombustível. Aliás, em 2008, ele foi finalista no Premio Nacional de Literatura Areté, em São Paulo. Lembro que, à época, o senhor ganhou de vários autores de peso nacionais e estrangeiros como, por exemplo, do famoso escritor norte-americano Peter Wagner, autor de Estratégias para o crescimento da Igreja. Como nasceu a ideia de escrever um livro assim, associando o trabalho de evangelização às atividades de desenvolvimento social?

B. SOAREZ — Vamos por parte. Eu costumo dizer que a denominação cristã que não tem, pelo menos, uma rede de ensino (escolas de qualidade) e um hospital de referência em saúde, não é uma igreja missionária. A Igreja Cidadã (agora publicado pela AD Santos Editora, de Curitiba, Paraná) é um livro que escrevi praticamente de joelhos, orando e buscando sabedoria em Deus para gestar uma ideia que viesse dar serviço para a igreja evangélica brasileira que, do meu ponto de vista, estava e está muito inerte, fazendo muito pouco por vidas humanas. Na época eu estava no Ceará, cursando a faculdade na área de educação, na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Eu já era bacharel em Teologia e, agora, estava estudando pedagogia, a ciência da educação, justamente para entender melhor a sociedade do meu tempo. Tinha acabado de escrever um projeto publicado sob o título de “Momento de reflexão para uma igreja planificada” (que não tem nada a ver com a ideologia socialista), que foi a ideia que deu origem ao IPER (Instituto de Pesquisa Ensino e Ressociabilização), que criou o Projeto Nova Alcântara (PNA), liderado pelo pastor Edilson de Carvalho Lins. Lá no Ceará, na Universidade Estadual, morei na casa do professor Petrus Johannes Von Ool, um padre holandês, casado, que foi aluno de Jean-Paul Sartre e de Carl Jung.

L. LIVRE Sartre, o filósofo? E Jung, o pai da psicologia analítica?

B. SOAREZ — Sim. Isso mesmo. Morei na casa dele. E ele me dava aula das culturas universais, no jardim da casa dele, até às duas, três horas da manhã... Bem, ali falei para o professor Petrus que eu estava escrevendo um livro e, então, conversei com ele sobre o tema e as características da obra. Ele, rapidamente, disse-me: “vamos aqui”. Subiu comigo para o segundo piso do prédio e mostrou-me um quarto cuja janela ficava de frente para o nascer do sol. E aí ele me disse: “Fique à vontade. A partir de agora este ambiente é seu”. Ele falava 11 idiomas fluentemente, dentre os quais o grego e o hebraico. E era tradutor de livros para a Editora Vozes. Instalei, então, minha máquina de datilografia, meus livros de pesquisa e passei a escrever. Mas, antes, eu dobrei os meus joelhos e orei ao Senhor Deus perguntando a Ele qual o título que eu deveria dar àquela visão que estava sendo implantada em Alcântara. Foi quando eu senti uma sensação de alegria que ligava meu coração à minha mente e, como um sopro suave, senti sussurrar: “A igreja cidadã. Esta é a mensagem, a visão que eu quero que tu escrevas a respeito do que vocês vão desenvolver a partir daquele local. Cuidem das necessidades das pessoas”.

L. LIVRENossa! Incrível isso.

B. SOAREZ — Foi por isso que quando o pastor Edilson Lins, em 2002, perguntou-me como deveríamos começar, o Espírito Santo respondeu imediatamente através da minha boca para ele: “Reúna a comunidade e pergunte qual é a necessidade do povo. Vamos trabalhar a partir das necessidades do povo”. E o pastor Edilson é muito ágil e prático. Diferente de mim que passo mais tempo pensando, elaborando ideias que possam ser úteis à justiça e ao desenvolvimento. Imediatamente ele reuniu o povo e fez a pergunta que o Espírito Santo tinha me orientado e que eu havia passado para ele. Então, uma menina de 11 anos respondeu: “queremos uma escola”. Sem perda de tempo, o pastor Edilson Lins, juntamente com a comunidade local, passou a implantar a visão missionária local por meio da educação. Hoje, o Projeto Nova Alcântara é uma realidade, tem diversos parceiros e uma grande escola com várias atividades de desenvolvimento local sustentável. Com o lançamento do livro A Igreja Cidadã em nível nacional, no ano de 2007, muitas pessoas que o leram implantaram esta visão missionária nas suas comunidades. Empresas cujos proprietários são cristãos passaram a organizar atividades humanísticas, cuidando de pessoas e orientando-as nos princípios do evangelho.

O livro Construindo Redes de Amizade é o manual prático da Igreja Cidadã.

L. LIVRE O senhor ministra cursos sobre estratégias de evangelismo e missões?

B. SOAREZ Sim. Dou consultoria institucional também. Estudo e pesquiso muito sobre estas áreas.

L. LIVREAgora, são dois livros. Não é? A Igreja Cidadã, que fala dos princípios do evangelho da justiça e cidadania, e o Construindo Redes de Amizade, lançado recentemente, que orienta a prática desses princípios. É isso mesmo?

B. SOAREZ — Exatamente. Construindo Redes de Amizade trata efetivamente de como trabalhar a metodologia do evangelismo envolvente, que é a implementação, na prática, da visão exposada no livro A Igreja Cidadã. Na verdade, os dois, juntos, são um curso completo de missões e evangelismo com suas devidas estratégias de alcance para fora...

L. LIVREEspera aí... Então, vamos tratar disto numa próxima entrevista, porque o leitor e eu queremos saber detalhes. O senhor tem muita experiência que não cabe numa única entrevista. Inclusive, na nossa entrevista de segunda-feira, 06/06, na rádio Esperança FM, o senhor falou de vários pontos da sua carreira como jornalista, escritor e pastor que muito nos interessam. Certo?

B. SOAREZ — Tudo bem. Estou à sua disposição.

(Continua na próxima edição do Leitura Livre)

MEMÓRIAS: DISCURSO DE COLAÇÃO DE GRAU (1984) | Dr. Jomar Câmara

Memória jurídica
Do discurso de colação de grau da UFMA em 1984, o que mudou após 36 anos no mundo do Direito?

 

Por Jomar Câmara
(Subprocurador Geral do Estado do Maranhão)

 

Dr. Jomar Câmara, subprocurador geral do Maranhão | Foto: arquivo pessoal.

DISCURSO DE COLAÇÃO DE GRAU
Curso de Direito da UFMA. Ano 1984.
Teatro Arthur Azevedo. São Luís/MA.

ERA O MÊS DE JANEIRO DO ANO DE 1984. Como orador oficial da Turma Kléber José Moreira Filho, da UFMA, então concludente do curso de Direito, em cerimônia realizada no Teatro Arthur Azevedo, eu, hoje Subprocurador Geral do Estado do Maranhão, após saudar autoridades presentes, pais, familiares, alunos concludentes e, em especial, o Paraninfo Profº Nivaldo Guimarães Macieira, expressei inquietações com o mundo, caracterizado por uma multiplicidade de fatores, mas sem esquecer a sociedade brasileira.

Falando das carreiras jurídicas aos 33 (trinta e três) jovens, homens e mulheres, para os quais foi dito que teriam o instrumento prático da linguagem como moeda corrente a partir daquele instante, eis que o direito se inflacionaria e se desvalorizaria à medida em que perdêssemos o lastro da ideia. Pensava nos ensinamentos do maior orador e jurista da história, Cícero, que já na Antiguidade transcrevia “que maior e melhor presente podemos dar à República do que ensinar e educar a juventude a descobrir suas potencialidades?


Foi expressado que se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um nos limites da sua energia moral, no entanto pode reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseverança, tal a missão do trabalho que laboraríamos daquela data em diante como membros do corpo jurídico brasileiro. Logo da análise da conjuntura social brasileira naquela época foi dito que devíamos pensar como Rui Barbosa, em sua obra “Oração aos Moços” no qual adverte: “ides consagrar à lei, num país onde a lei absolutamente não exprime o consentimento da maioria, onde são as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis, as que põem, e dispõem, as que mandam e desmandam e tudo a saber; num país onde, verdadeiramente, não há lei, não há moral, política ou juridicamente falando”.

Então, falei nas dificuldades a serem enfrentadas. Pois, no Brasil, a lei se deslegitima, anula-se e se torna inexistente, não só pela bastardia da origem, senão ainda pelos horrores da aplicação. Neste contexto, o ordenamento jurídico brasileiro da ocasião era insuficiente para reordenar o Estado, reclamando assim convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, revogando-se a legislação autoritária como a Lei de Segurança Nacional, tendo o novo ordenamento jurídica concepção de uma “Ordem Jurídica” por uma Constituição outorgada, legítima em um Estado Democrático de Direito.

A questão fundiária, tratada com certa dificuldade, naquele momento era controvertida, ensejando Reforma Agrária adaptada às suas exigências sociais, diluindo o conflito direto entre posseiros, de um lado e grileiros e proprietários de outro, na luta pela posse e propriedade da terra, uma vez que a moderna concepção da propriedade como função social vinha sendo desrespeitada e ignorada em diversos episódios referentes à posse da terra.

Os problemas eram tantos em 1984 que a Crise na Economia mundial e consequente Recessão Econômica no Brasil, exigia, como de fato, ainda, exige modernamente, uma reforma tributária, estruturada nos moldes da real vida social no país, objetivando-se a oferecer a todos mais participação no produto da arrecadação da União. Não cabia naquela época, assim como nesta, simples instituição de tributos, tirando-se diretamente ou indiretamente do contribuinte aquilo que é peculiar à sua existência. Os Estados e Municípios precisam de sustentáculos e mais repasses da receita bruta nacional.  Esse argumento, trouxe ao contexto que o Apóstolo Paulo em suas pregações falava que boa é a lei onde se executa legitimamente” BONA EST LEX, SI QUIS EA LEGITIME UTATUR”- querendo transmitir que- Boa é a lei quando executada com retidão, ou seja, boa será, em havendo no executor a virtude, que no legislador não havia.

Então, era vital reforma do judiciário brasileiro inspirando-se nos reais interesses da justiça, trazendo proposta séria e efetiva independência, política, administrativa e financeira. Sempre falando que era inadmissível o controle do Poder Executivo no processo de escolha, promoção e remuneração de magistrados. De igual forma coloquei que a instituição do Ministério Público, guardião da lei, deve ser liberada de tal subordinação, a fim de bem cumprir sua função constitucional. Que exista a independência entre os poderes da União Federal, conforme estabelecia o artigo 6º da Constituição, vigente, naquele período, mas que essa harmonia não era para tirar autonomia, quer do Judiciário, quer do Legislativo, sobrepondo o Executivo como suporte mestre de ambos. Devíamos excluir do executivo a função de legislar, como fazia esse Poder através de Decretos-Leis, como as Medidas Provisórias de hoje, uma vez agredir o homem democrático, sendo necessário nessa esteira que era urgente um efetivo sistema de assistência judiciária, a descentralização dos tribunais, o controle pelo Judiciário e Ministério Público, dos atos praticados na apuração das infrações penais, vez que, como acontecia, prejudicava a Justiça.


A sociedade humana é o meio em que o direito surge e desenvolve-se. Direito é realidade da vida social e não da natureza física ou do psiquismo da vida dos seres humanos, conforme leciona o Profº Hermes de Lima, na obra Introdução à Ciência do Direito. Por isso, trouxe à baila que deveríamos pensar nos moldes do insigne Advogado Sobral Pinto, o qual assegurava que o profissional do direito deve estar sempre dialogando com a democracia em busca da Democracia e do Estado de Direito. Democracia que para o ex-Presidente Médici é a forma de convivência política, não constituindo categoria lógica, imutável no tempo e no espaço, porém conceito histórico, sujeito às revisões impostas pela conveniência social.

Foi, então, concluída a temática, falando que nossa direção profissional diversificava-se em alguns aspectos sobressalentes como;-A questão do ensino jurídico resultante de pretensa perspectiva democrática, e as limitações do mercado de trabalho, real perspectiva de desvalorização da advocacia, com o rebaixamento de seu padrão cultural e técnico-profissional;-A dependência do Poder Judiciário e a crise na administração da justiça, configurando-se pela morosidade, custo elevado e elitismo, reclamando um esforço conjunto das três profissões forenses; magistratura, ministério público e advocacia, dando-lhes autonomia, mas garantindo ao advogado sua condição de “elemento indispensável à administração da justiça”, como está na lei;-Pesquisar objetivamente as condições do mercado de trabalho das atuais alternativas da profissão e as perspectivas de cada um.

Destarte, não nos desvairíamos em nosso inexperiente entrar no mundo jurídico-profissional: cultivando as relações de poucos amigos, inescrupulosamente escolhidos entre homens que nos pareçam mais graves e estudiosos, buscando os nossos livros que são amigos insuspeitos, verdadeiros e úteis, eis que o futuro grandioso nos esperava, na certeza de que Deus iluminaria nossos espíritos para conhecermos o caminho que devíamos trilhar, nos movendo o coração sempre para o bem. Obrigado!

Passados 36 anos, fica uma pergunta: existem diferenças entre a sociedade jurídica do Brasil daquela época e a de hoje?

domingo, 29 de maio de 2022

Entrevista: PR. FRANCISCO TAVARES | Missões com "barreiras"

ENTREVISTA: PR. FRANCISCO TAVARES

Missão sem “fronteiras”. Mas com muitas “barreiras”
O pastor missionário Francisco Tavares, da AD no Maranhão, fala da dificuldade de evangelizar sem salário e diz que a igreja evangélica cruzou os braços e fechou os olhos para a obra missionária.


Por Battista Soarez
(De São Luís - MA)

Pr. FranciscoTavares em São Luís, onde mora com a esposa | Foto: Battista Soarez

“EU SINTO MUITA TRISTEZA quando vejo a forma como estão tratando a obra missionária atualmente. Uma verdadeira injustiça”, diz o pastor Francisco Travares, 59 anos, membro da Igreja Evangélica Assembleia de Deus no Maranhão. Tavares é casado com a missionária Eliene de Jesus Mendes Tavares, filha de pastor, e, como muitas esposas de pastores, se mostra bastante entristecida quando o assunto é o ambiente cristão. O casal tem dois filhos. Um homem e uma mulher. E dois netos.

O pastor-missionário é evangélico desde criança. Cresceu sob as orientações doutrinárias da Bíblia e cedo ingressou numa carreira profissional promissora. Ainda muito jovem, foi executivo de três multinacionais como Ambev, Alumar e Vale do Rio Doce. Nos anos 1990, recebeu um convite da Assembleia de Deus em São Luís para ingressar no ministério pastoral, o que o levou a abrir mão de um ganho de quase 50 salários mínimos, à época, para ser pastor. Formado em química, sociologia, filosofia e pedagogia, resolveu também se capacitar na área teológica com o intuito de servir a igreja evangélica. Bacharelou-se em teologia, fez mestrado em antropologia missionária e ainda fez dois doutorados.

Depois de tudo isso, teve a primeira decepção: o acordo da igreja não foi cumprido. Com isso, vieram as dificuldades e Tavares teve de se virar dando aulas em instituições de ensino superior para sustentar a família. Ao ingressar na CEADEMA (Convenção Estadual da Assembleia de Deus no Maranhão), nunca recebeu uma igreja para pastorear. E, como pastor, nunca teve salário. Foi aí que ele resolveu ser missionário em tempo integral, recebendo doações de voluntários para sobreviver. Pastor Tavares tem viajado por regiões do Brasil em busca de conhecimento e capacitação para servir a obra de Deus. Mas percebe que a idade está passando rapidamente e do muito que aprendeu pouco tem sido aproveitado ao longo do seu sofrido ministério.

Em entrevista ao Leitura Livre, Tavares falou em tom firme, deixando claro que conhecimento ele tem com fartura para administrar qualquer situação ministerial em matéria de igreja. Nesta entrevista, fica claro que a liderança da igreja evangélica não está sabendo aproveitar seus soldados, em detrimento de políticas eclesiásticas míopes e assassinas de dons e ministérios em homens que Deus chamou e capacitou para fazer a sua obra. Vamos à entrevista. Longa, mas que vale a pena ler para conhecer a realidade do campo missionário:

LEITURA LIVREO senhor é visto como um dos pastores da CEADEMA (Convenção Estadual da Assembleia de Deus no Maranhão) mais bem preparados e dedicados na obra de Deus na sua convenção. Para o senhor, hoje, que se preparou intelectual e teologicamente a vida inteira para servir a igreja, o que significa fazer missões numa denominação como a Assembleia de Deus que, no Brasil, não tem visão missionária?

PR. FRANCISCO TAVARES — É uma pergunta um tanto difícil de ser respondida. Porque, quando nós olhamos para a estrutura denominacional de uma igreja do porte das Assembleias de Deus no estado do Maranhão e comparamos essa estrutura enorme com a sua incapacidade de ver e enxergar os campos brancos, a gente fica até constrangida de fazer algum tipo de avaliação ou crítica, ainda que seja construtiva. Porque a disparidade, a discrepância entre a estrutura de natureza econômica, financeira, física, prédio, veículo etc. e a necessidade que existe no campo, é tão grande que é como se comparássemos o padrão de vida de quem mora na África do Norte com quem mora na Suécia, por exemplo. Porém, respondendo de uma forma mais objetiva à sua pergunta, fazer missões nas condições em que vivo hoje e numa igreja sem nenhuma visão missionária, significa três coisas.

Pr. Tavares em um assentamento em Humberto de Campos | Foto: Divulgação

L. LIVRE — Quais?

PR. TAVARES — A primeira é renunciar o básico como, por exemplo, almoçar e jantar. Renunciar andar de carro particular ou de coletivo e ter que andar a pé, caminhar por até 200 quilômetros como eu tenho feito ao longo do meu ministério missionário. A segunda, significa se tornar antipático, inimigo, como se a gente fosse um comunista, esquerdista, sanguinário, daqueles que são considerados como se fossem stalinistas. Assim são vistos aqueles que têm visão missionária dentro da nossa denominação. E a terceira, significa ter de chorar, orar e derramar muitas lágrimas e dividir estas lágrimas com milhares de pessoas carentes e necessitadas somente no Maranhão.

L. LIVRE — Tudo isso?

PR. TAVARES — Sim. Imagine só. Quatro anos atrás, eu, juntamente com a SEPAL (Serviço de Evangelização Para a América Latina), fizemos uma pesquisa de natureza científica e constatamos, e posso provar, 35 mil povoados no Maranhão sem a presença do evangelho de Jesus. Mais especificamente por parte de qualquer igreja da Assembleia de Deus. Conheço vários municípios no sertão onde já foram levantadas várias igrejas da Assembleia de Deus e, por falta de manutenção, caíram as paredes literalmente. Porque, pura e simplesmente, não existe visão de plantio de igreja. Igreja não é como uma bananeira que a gente planta e ela cresce rápido. Uma igreja pode levar até trinta anos para crescer. Eu conheço uma província na Suíça onde dois missionários americanos passaram trinta anos e não ganharam uma alma para Jesus. Um dia tiveram que se aposentar. O segundo casal que chegou lá conversou comigo e o Reinaldo Lindório. E eu, então, perguntei para o casal: “o casal de missionários que acabou de se aposentar passou trinta anos aqui e não ganhou uma alma para Jesus. E vocês?”. Eles olharam para nós e responderam com toda força: “nós somos vocacionados. E vamos continuar pregando”. E, aí, eu lembrei de Jeremias quando tiraram ele de dentro do poço de lama e o sacudiram e perguntaram: “e agora, Jeremias?” Ele olhou nos olhos do seu algoz e bradou: “Assim diz o Senhor..”. E continuou a pregar.

Pr. Tavares levando ombro amigo a região pobre de Primeira Cruz | Foto: Divulgação.

L. LIVRENa sua visão, o que a igreja teria de fazer para que a obra missionária no Brasil e no mundo fosse mais efetivamente satisfatória? No sentido de que os missionários não passassem dificuldade no campo como o senhor vem passando ao longo do seu ministério?

PR. TAVARES — Precisamos ser mais específicos com relação a essa questão. Porque quando o senhor fala “no mundo”, o mundo, hoje, é ocidentalizado. E uma pequena parte que não é ocidentalizada, é radical. É intolerante do ponto de vista religioso. Então os países ocidentalizados, majoritariamente capitalistas, movidos por um processo de expansão universalista chamado globalização (que envolve sociedade, economia, política e cultura em nível mundial), acabam achatando todas as culturas. Inclusive a cultura religiosa. Nisso a igreja é achatada pela globalização. Nisso tem acontecido um movimento inverso, de fora para dentro da igreja. Jesus disse que a igreja tem que ser “sal” e “luz” do mundo e no mundo. Para que ela tempere e ilumine. Sal não é para salgar. É para temperar, ou seja, para dar aquele equilíbrio no sabor e ficar de bom gosto. E a luz não é para queimar ou encandear, mas para alumiar, tirar da escuridão. Só que, infelizmente, desde o pós-guerra, o cristianismo mergulhou, a partir dos Estados Unidos, numa crise sem precedente em que esse movimento passou a acontecer de forma contrária.

L. LIVRE — Como assim?

PR. TAVARES — Em vez de a igreja influenciar de dentro para fora, ela embarcou não foi numa canoa, mas num transatlântico sem leme, totalmente desgovernado, e desceu correnteza abaixo sem saber aonde vai ancorar. Hoje ela está mergulhada numa cultura capitalista, materialista, ocidentalizada, selvagem em que prevalece a lei do mais forte. Essa cultura veio para dentro das igrejas.

Pr. Tavares no sertão do Piauí, onde tem o menor IDH da América do Sul | Foto: Divulgação

L. LIVRE — O senhor pode explicar melhor isso?

PR. TAVARES — Existiu um culturalista, sociólogo, considerado um dos últimos pensadores de mentes mais férteis do século passado, que foi Zygmunt Bauman. Esse homem estudou profundamente a cultura urbana. Inclusive um dos livros dele chama-se Cultura mundo. Ele publicou quase uma centena de livros. E ele vai falar sobre uma sociedade líquida e modernidade líquida em que os relacionamentos são extremamente volúveis. Fazem-se e se desfazem com a mesma facilidade. Por isso a sociedade é líquida. Outra marca dessa sociedade líquida é que a cultura ocidentalizada, que entrou na igreja e aí essa igreja, em vez dela influenciar, ela passou a fazer parte desse sistema cruel e perverso. E aí a igreja institucional é extremamente perversa, desigual, desumana, arbitrária e até violenta. Prega e vive uma espiritualidade violenta. E eu vou lhe dar aqui um exemplo. Se você fosse hoje um governador, esquerda ou direita, não importa, e nunca foi crente. E eu sou crente há cinquenta anos. Mas se o presidente da minha denominação tivesse que escolher por cortar a cabeça entre mim que sou crente e a do governador que não é crente, ele ia optar pela minha. Ele prefere perseguir e matar o seu próprio irmão na fé. Por que?

L. LIVRE — Sim. E por que?

PR. TAVARES — Porque a igreja institucional foi engolida por esse sistema. E aí eu uso as palavras de Bauman que diz: “nesse sistema só vale quem consome e quem produz”. E para piorar, o ser humano vale menos que a banda de um frango. Porque se você for na cidade, você não vai ver um frango no meio da rua. Mesmo que seja uma banda. Mas você vai ver seres humanos na rua, jogados nas calçadas, mendigando, dormindo ao relento, pedindo esmolas e ninguém ligando para eles. Sabe por que? Porque uma banda de frango vale 20 reais e um ser humano não vale nada, inclusive para muitos crentes. E a igreja foi engolfada nesse pântano de materialismo injusto e impiedoso o qual Jesus rebateu o tempo todo. Enfim, a igreja institucional está operando o tempo todo contra o reino de Deus. Por isso ela está fazendo um papel inverso ao evangelho genuíno. Então, a igreja teria que parar e rever tudo outra vez, inclusive no que se refere à sua administração, justiça e unidade no corpo de Cristo. Alcançar o mundo para Cristo passa por essa reengenharia.

Pr. Tavares recolhendo donativos pra obra missionária | Foto: Divulgação

L. LIVRE
Com isso o senhor está dizendo que a igreja, mergulhada nessa sociedade líquida, está praticando um evangelho de injustiça, totalmente contrário ao evangelho da justiça, proposto, pregado, ensinado e vivido por Jesus no seu ministério terreno?

PR. TAVARES — Sim. Porém, quando nós falamos de igreja, que fique bem claro que me refiro à igreja institucional. Não à igreja corpo-espiritual, santa e fiel. A igreja pode ser entendida como instituição e como corpo de Cristo. Mas até a igreja enquanto corpo de Cristo também pode ser contaminada. Porque Jesus disse que o trigo cresce junto com o joio. A diferença é que a igreja corpo de Cristo tem o Espírito de Deus. Enquanto que a igreja institucional não tem o Espírito. Ela é como aquele esqueleto da visão de Ezequiel no capítulo 37. Estamos construindo templos luxuosos, mas vazios de Deus. Estamos construindo uma cultura de fossilização. Os líderes religiosos estão gastando milhões e milhões em dinheiro construindo templos pomposos, faustos, para deixarem para o Anticristo usar. Enquanto isso, estão negando o pão aos missionários que estão no campo sem comida, bebendo água barrenta, se enchendo de doenças e sem sequer uma bicicleta para andar.

Pr. Tavares levando apoio a missionários por meio do Ombro Amigo | Foto: Divulgação

L. LIVRE — Essa é a realidade que o senhor tem presenciado?

PR. TAVARES — Com certeza. Nas minhas andanças pelo sertão, tenho visto missionários morrendo de fome, comendo animais silvestres, com seus filhos sem estudar e fazendo sandálias de garrafa pet porque não recebem ajuda das suas igrejas para trabalhar na obra. Infelizmente, a igreja institucional se tornou tão perversa que vou revelar aqui um dado estatístico recente do Conselho Mundial de Missões da Inglaterra. O órgão diz que 87,88% dos recursos que sustentam aqueles que sofrem na obra missionária vêm dos aposentados e daqueles que vendem cheiro-verde e carvão nas feiras. Isso é uma vergonha muito grande. Isso mostra que a igreja institucional não está fazendo nada por missões. Fechou os olhos e cruzou os braços para missões. Está de mão encolhida. E praticando suas injustiças eclesiais. Até o ano 300 d.C., a igreja era perseguida. A partir daí, ela passou a ser perseguidora. Com o andamento da história, ela se constantinizou. E chegou a um momento em que de uma vez só ela matou mais de seiscentos mil mulçumanos. Tem pastor por aí ganhando mais de 400 mil reais de salário por mês. Sabe quem está pagando esse salário? Vendedores de bolo e de caranguejos. Eles são fiéis dizimistas e ofertantes. Enquanto isso, os grandes líderes estão se prostituindo com o poder político, o poder econômico, temporal e efêmero. É lamentável. Se, hoje, eu não tivesse feito uma decisão de natureza confessional e muito consciente, eu jamais entraria num templo denominado cristão.

L. LIVREO senhor tocou num ponto importante. Que são os altos salários de pastores e líderes de grandes igrejas e ministérios locais. Comparativamente, têm pastores ganhando mais de 300 mil reais por mês, como é o caso de um conhecido pastor do interior paraense. Enquanto há pastores e missionários sofrendo na obra sem ganhar nada, como é o seu caso e o caso de outros que não têm ganho fixo. Como o senhor vê essa desigualdade no meio de um povo que se diz de Deus e cristão, que era para fazer tudo diferente? Inclusive pagando bem os seus missionários para que eles pudessem andar melhor e ir mais longe na tarefa de evangelização?

PR. TAVARES — Eu vejo de duas maneiras. Antes quero destacar que não vejo com sentimento de revolta ou de ódio. Não. Longe de mim. Em primeiro lugar eu vejo com muita tristeza. Porque eu conheço o dia-a-dia dos missionários no campo. Apenas 2% ou 3% de missionários ganham acima de dois salários mínimos. A maioria ganha um salário mínimo. Pior: existem casos de missionários que, além de ganhar pouco, o dízimo dele é descontado na fonte. E isso é ilegal. É um confisco. Isso é apropriação indébita do alheio. Existem várias igrejas que fazem isso na surdina. E isso me dói. Me deixa triste. Mas não me enche de ódio. Por que? Porque eu tenho vida com Deus. A segunda forma de eu ver isto, é como cristão. E como cristão, eu consigo ver uma mudança. Mudança a partir de pessoas como o pastor Battista Soarez que eu o conheço há quase quarenta anos e sei da sua capacidade e da sua forma de pensar. A partir de pessoas como Rondaldo Almeida Lindório, um missiólogo conhecido mundialmente, mas um homem de uma humildade rara. E outros como um grande amigo meu, Flávio Paiva, que está na África com a família, morando no Senegal e já percorreu outros países da África. Então, existe sim uma possibilidade, ainda que remota, de a gente se juntar, fazer projetos, orar e se mobilizar efetivamente para fazer a coisa acontecer como a gente entende que Deus quer fazer. O importante é a gente não desanimar. E ficar longe daqueles que estão na igreja, mas vazios de Deus. Estão lá apenas sugando a igreja e botando o pé em cima daqueles que realmente têm Deus na vida e chamada divina. Mas estão neutralizados por líderes que há tempos perderam ou nunca tiveram a visão do reino. O certo é que é difícil fazer missões. É muito complexo ser missionário numa cultura em que o “ter” se sobrepõe ao “ser”, contrariando, aí, uma teologia de um homem que não foi um teólogo acadêmico, mas foi um erudito de mão cheia, que foi C. S. Lewis, autor de Cristianismo puro e simples.

Pr. Tavares com a esposa Eliene doando cesta básica a missionários | Foto: Divulgação

L. LIVRE — Sim. Verdade. E que não era pastor.

PR. TAVARES — Não era pastor. Mas trabalhou três ideias incríveis, que são a “ideia da rebelião”, a “ideia da graça” e a “ideia de Deus”. Ele baseou-se em três questões: quem é Deus?; o que é graça?; o que é rebelião? E quando ele fala de rebelião, ele começa por Adão e Eva. Os primeiros humanos que se rebelaram contra Deus porque confundiram o “ser” com o “ter”. Porque o diabo chegou de pronto e falou para eles: “vocês vão ter”. “Ser” eles já “eram”. Agora, eles estavam diante da proposta do “ter”. E é isso que enche e engorda os olhos da humanidade. E, nesse sentido, homens e mulheres vocacionados para missões estão sendo estigmatizados como mendigos. Alguém chega e pergunta: você é missionário? E você responde: sim, sou missionário. E aí logo você escuta: então você está fadado a ser mendigo. Eu, como pastor missionário, vivo de doações, embora seja obreiro de uma convenção rica. Não tenho salário. Agora imagine ter que dar assistência para mais de sessenta campos missionários sem ajuda financeira fixa, a mercê apenas de doações?! Não tenho nada.

Com a esposa Eliene em viagem missionária levando Ombro Amigo | Foto: Divulgação

L. LIVRE — Imagino a sua situação...

PR. TAVARES — Não tenho, sequer, nenhum jazido para ser enterrado. Se eu morresse hoje, não teria nenhum lugar para ser sepultado. Já fui executivo de três multinacionais. Tinha um bom salário e uma vida de regalias. Trabalhava muito. Mas ganhava bem. Me sentia até orgulhoso. Gostava da vida que tinha. Estaria sendo hipócrita se eu dissesse que não gostava da vida que levava. Mas nada se compara com o que sinto hoje, ao entrar numa canoa e pegar aquele ar puro e refrescante sobre as águas de um rio em direção ao campo missionário, levando ajuda aos missionários que vivem ganhando almas para Cristo sem praticamente nada, passando dificuldades com esposa e filhos, misturando lágrimas com farinha e peixe seco. Isto é o que eu vivo. Mas sou realizado do ponto de vista vocacional. Porém, sou entristecido em ver pessoas sofrendo no campo, enquanto outros na cidade, que se dizem crentes, no topo da pirâmide, estão reproduzindo modelos de tremenda desigualdade social. Não estou generalizando. Há pessoas boas, nesse meio, que eu conheço de perto, que contribuem com o reino, inclusive por meio de suas ideias, projetos e livros. Como já disse, Battista Soarez, Ronaldo Almeida Lindório, Wayne Cordeiro e outros bons autores, inclusive dos EUA, são homens de Deus que estão dentro da instituição, mas que ainda fazem a diferença. Por causa desses homens, a instituição, no seu todo, ainda não está podre. Aqui mesmo em São Luís têm homens de Deus que ainda têm o coração na obra, como, por exemplo, o pastor Wellington Garcez, um empresário que sempre me ajuda, pegando um pouco do seu salário e contribui com a obra missionária. E ainda disponibilizou as instalações da sua igreja para a nossa Agência Missionária Ombro Amigo.

Pr. Tavares e esposa navegam 7 horas para chegar a ilhas do Atlântico levando ombro amigo | Foto: Divulgação

L. LIVRE — O senhor já disse que não tem salário como pastor missionário. Como é dar assistência para mais de sessenta campos missionários no Brasil e exterior, recebendo apenas pequenas doações de amigos? Como funciona essa ajuda?

PR. TAVARES — Na verdade, no Brasil, são 79 casais de missionários que dou assistência. Fora do Brasil são 12 missionários. Como não tenho salário, as ajudas no exterior são feitas de forma remota. Por meio de doações. À distância. No Brasil, eu vou pessoalmente. Mas todo mês Deus usa pessoas para ajudar. Como eu disse, têm pessoas que me ajudam dentro da sua possibilidade. Como o senhor, por exemplo, que me deu ajuda ontem. Mas eu sei que o senhor também não tem, a não ser a sensibilidade de contribuir na medida em que pode. Tem outros pastores que também me dão alguma coisa. Mas eu e minha esposa precisamos comer todo dia. Tenho contas a pagar. Mas ajuda mesmo da igreja ou da convenção eu não tenho. Nenhum centavo.

Caixas de alimentos são levadas a missionários em regiões sem água e luz | Foto: Divulgação

L. LIVRE — No âmbito do ministério cristão, há muitas pessoas em crise em relação ao seu chamado. Como o senhor vê essa questão vocacional hoje em dia?

PR. TAVARES — O senhor usou uma expressão que tem se tornado comum e que, no entanto, é um conceito que precisa ser revisto. A palavra “chamado”. Eu lembro de Sophie Muller, uma missionária colombiana radicada nos EUA, que no final dos anos 1940 e 1950 trabalhou com povos indígenas no extremo norte do Amazonas. Ela chegou a traduzir para a língua indígena praticamente todo o Novo Testamento. Essa mulher fez um trabalho extraordinário. Plantou igrejas, sozinha. Aprendeu a língua dos indígenas. Era uma mulher que não tinha um metro e meio de altura. Aquela mulher levantava às quatro horas da manhã e, junto com os índios numa canoa, saia visitando os lugares ribeirinhos. Porque para que você possa fazer uma tradução bíblica mais ou menos próxima da realidade nativa, é preciso que você esteja inserido no contexto daquela realidade. E quatro horas da manhã ela estava numa canoa traduzindo os textos bíblicos. E o indígena que estava remando a canoa dizia-lhe: “missionária, eu não estou aguentando mais”. E ela respondia: “calma, ainda faltam dois versículos”. Depois ela voltou para os Estados Unidos e a imprensa americana ficou encantada com o trabalho que ela fez. E um dia os jornalistas lhe perguntaram: “missionária, qual o segredo do seu chamado?” E ela, então, respondeu: “Eu? Eu não recebi chamado”. E aí eles perguntaram novamente: “e como se explica esse fenômeno na sua vida, em fazer um trabalho maravilhoso como esse, de plantio de igrejas no Brasil?”. Ela respondeu: “Eu recebi uma ordem. E eu apenas obedeci”. Então, a explicação é esta: o chamado é uma ordem. Quem decide amar a Deus, obedece.

Região de Caité | Foto: Divulgação

L. LIVRE — O senhor é mestre em antropologia missionária. Tem dois doutorados. Um em teologia cristã. E outro em educação teológica. Com toda essa bagagem, como o senhor analisa o quesito “identidade cristã”?

PR. TAVARESO verdadeiro cristão, o cristão autêntico, não tem escolha em relação ao que Deus estabeleceu para ele. A gente se baseia tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento. Então, a identidade cristã tem sido solapada, principalmente nos Estados Unidos, por aquilo que chamamos de “pós-cristianismo”. E isso tem um reflexo direto na obra missionária. Principalmente do ponto de vista transcultural. Para você ter uma ideia, no Brasil, nós estamos patinando como um carro atolado, sem sair do lugar. Agora em 2022, faz vinte anos que não conseguimos enviar seis mil missionários por ano para o campo transcultural. Ou seja, isso representa, se comparado com a quantidade de cristãos nominais, um avanço minimamente nanico. Quando o Brasil se arvora dizendo que tem mais de 50 milhões de evangélicos, se você pegar esse número e fizer uma correlação com o número de enviados vocacionados para o campo missionário transcultural, isso representa 0,001%. É como se você dividisse um em seis. E a sexta parte dessa quantidade não chega a ser uma coisa diabólica, mas é algo inócuo do ponto de vista missionário.

L. LIVRE — Nossa, Deus! Sem exagero, pastor?

PR. TAVARES — Sim. Sem nenhum exagero. Totalmente sem consistência. Quer dizer, a qualidade de evangélicos que existe no Brasil e na América Latina, e até nos EUA, é inversamente proporcional à quantidade de missionários enviados para o campo. E isso está intimamente relacionado com a identidade cristã. Por exemplo, a Universidade Mackenzie, uma das maiores de São Paulo, onde tem a maior biblioteca da América Latina, é uma instituição cristã. Mas, infelizmente, está caminhando para o secularismo. A maioria dos jovens que estudam na Mackenzie, na faixa etária entre 18 a 27 anos, é formada por ateus. Não creem em Deus. São jovens da área de ciências e tecnologias influenciados por pensamentos não-cristãos. A culpa não está nos missionários que fundaram a instituição. Isso é uma avalanche. É uma tendência cultural moderna no contexto das tecnologias da informação, como teorias, internet, ideologias etc. E só quem pode frear isso é o Espírito Santo por meio de pessoas vocacionadas. David Levingstone, missionário escocês entre as tribos africanas, passou 40 anos servindo a Deus na obra missionária. Um dia ele morreu. Os estrangeiros foram buscar seu corpo. Mas se depararam com uma situação inusitada. Um nativo pegou uma espada e abriu o peito de Levingstone, arrancou-lhe o coração e disse: “O corpo pode ser escocês. Mas o coração é africano”. Cavou um buraco e enterrou o coração do missionário ali mesmo, no meio das tribos, em pleno solo africano. Tempos depois, passaram uns missionários por aquela região e perguntaram aos nativos se eles conheciam a Cristo. E olha o que eles responderam: “Nós conhecemos um Cristo que passou por aqui. Só que o nome dele não era Cristo. Era David Levingstone”. Isto é identidade cristã. Se identificar com Cristo é ser parecido com Ele.

Em região carente de Sucupira do Riachão | Foto: Divulgação

L. LIVRE — Incrível isso. Mas quero insistir numa coisa. Sobre o seu sustento missionário. De quanto o senhor precisaria, hoje, para sobreviver nas suas ações missionárias? E deixar de andar a pé, como o mesmo senhor disse, por até 200 quilômetros fazendo a obra missionária, por meio do Projeto Ombro Amigo?

PR. TAVARES — Eu necessitaria de oito salários mínimos por mês. Com esse dinheiro, eu conseguiria por gasolina no carro e comer durante as viagens. Coisa que dezesseis congregações, por exemplo, resolveriam se cada uma delas se dispusesse a dar uma oferta de meio salário por mês. O que é tão pouco. Não seria por amor a mim. Seria por amor à obra de Deus. Com oito salários eu viveria com o mínimo de dignidade. Sem ter que andar a pé ou de bicicleta, porque é muito perigoso. E a pé é muito dolorido. Eu já estourei unhas. Já teve vez que eu tive de tirar o sapato porque a unha estava pretinha de sangue de tanto eu andar a pé. Uma vez eu caminhei quase 70 quilômetros num dia só. Então, eu entendo, hoje, que precisaria de um valor que fosse suficiente para colocar gasolina no meu carro, pagar a prestação dele e manter a minha família com o básico. Nem plano de saúde eu teria. Mas oito salários mínimos por mês daria para eu viver com o mínimo de dignidade.

L. LIVRE — E dignidade, em matéria de obra missionária, é uma palavra que parece estar sendo totalmente relativizada ou até mesmo ignorada pela igreja instituição atualmente. É isso?

PR. TAVARES — Exatamente. O campo missionário sofre, atualmente, uma tremenda injustiça. Almas estão morrendo sem salvação, e os missionários estão passando fome e morrendo junto com elas. Tem missionário cujos filhos não conseguem nem estudar. Enquanto isso, pastores e líderes de grandes igrejas desfilam na frente da gente com carros caros e recebendo salários altíssimos, sem nenhum peso de consciência.

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Para quem desejar contribuir com o Projeto Ombro Amigo, o celular/WhatsApp do pastor Tavares é (98) 9 8448 5839.

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– Fim –