Declínio do espírito criativo,
morte da razão inteligente
Como a inépcia da política municipal está assassinando a cultura
e a arte literária de São Luís
BATTISTA SOAREZ
Escritor,
editor e jornalista
6a. Feira do Livro de São Luís não agradou aos participantes. |
No ano em que a capital maranhense completa 400
anos, a 6ª Feira de Livros de São Luís,
edição 2012, comemora com um verdadeiro caos. A avaliação vem dos próprios
participantes. Livreiros e organizadores reclamam que a prefeitura municipal
foi totalmente omissa. “Faltou mais apoio. Este ano, a feira só aconteceu
porque é lei. Se não, não teria acontecido”, disse Milton Lira, gerente da
Livraria Vozes, em São Luís, e ex-presidente da ALÉM (Associação de Livreiros
no Estado do Maranhão). O prefeito João Castelo, derrotado nas últimas
eleições, esteve presente no primeiro dia da feira e foi o primeiro a comprar o livro São Luís: memória e tempo, de autoria do escritor maranhense Antônio Guimarães. Castelo, particularmente, não manifestou apoio à feira, mas o secretário municipal de cultura Euclides Moreira Neto e sua equipe mostraram total empenho na realização da feira. Mas as dificuldades foram muitas.
O problema já começa pela mudança de local. Nos
anos anteriores, a feira vinha acontecendo na Praça Maria Aragão, local mais apropriado, de acordo com os
participantes. “É amplo. Tem estacionamento e o acesso é melhor”, acentuou o
escritor Antônio Guimarães, autor de São
Luís: memória e tempo. Em 2012, a feira mudou para o CEPRAMA e isso
dificultou o acesso das pessoas.
Maior número de pessoas se fez presente no último dia da feira. |
Logo na entrada, os participantes eram
recepcionados pelo sugestivo cheio de esgoto. Na calçada, um esgoto estourado
jorrava abundantemente. As pessoas molhavam os sapatos naquela água fedendo a
bosta e ninguém da administração pública aparecia para resolver o problema.
Para quem veio de outro estado, uma surpresa estranha e desagradável: “Ai,
gente! Patrimônio cultural da humanidade por aqui fede a cocô”, disse a turista
Janete Lali Magalhães, de Canoas, Rio Grande do Sul. Sujeira, buracos, esgoto e
fedor. Essa é a cultura que a cidade patrimônio histórico oferece para a
humanidade.
Aliás, esgoto é, talvez, o destino que o poder
público de São Luís quer dar à cultura do livro. Basta fazer uma visita à Rua
do Sol e ver o que estão fazendo com a casa de Aluízio de Azevedo, um dos
maiores escritores de São Luís de todos os tempos, publicado em mais de 150
países. A casa do autor de Casa de pensão,
onde deveria ser um acervo literário —
pois ali o escritor produziu duas de suas mais importantes obras, O mulato e O cortiço —, foi
vergonhosamente vendida para um camelô que passa a noite inteira destruindo a
parte interna daquele patrimônio cultural e incomodando a vizinhança. Parece
que o poder público pouco está ligando para a cultura do livro e produção
literária. Agora, São Luís tem uma cultura patrimônio da humanidade, tombada,
entretanto, pela contracultura da desumanidade.
Na feira do livro de 2012, a Casa do Escritor, por exemplo, ficou
escondida quase que debaixo do piso, como sinal de não-reconhecimento a quem
faz arte literária na história terra de escritores e poetas. No auditório Quartocentenário —
bem localizado até —
não comparecia quase ninguém para ouvir as palestras.
A venda de livros não foi como o esperado. |
“Não ouve muita divulgação. Acho que uma feira
desse nível deveria ser divulgada em todo o Maranhão e no Brasil inteiro”,
disse o engenheiro civil Irandi Marques Leite. Leitor apaixonado, Irandi sugere
que seria indispensável a participação da Academia Maranhense Letras, das
universidades públicas e privadas e, ainda, das faculdades. “As empresas —
acrescentou ele — como Vale do Rio
Doce, Alumar e outras também deveriam estar ali participando e apresentando seus
projetos de sustentabilidade para a área da cultura literária”.
De fato. Não se faz empresa sem livro. Não
existe universidade sem livro. Não há cultura sem livro. Nem ciência. Nem arte.
Sem livro, nem se fala em literatura. E a literatura, claro, é a vida útil de
qualquer civilização. O livro mantém o diálogo entre gerações. É com a
existência de livros que se conhece o passado, registra-se o presente e se
promove o futuro. No entanto, falta política cultural para o livro. Escritores
não recebem nenhum incentivo. Nem se organizam como deveriam.
A beleza da cultura maltratada
São Luís é bela. Muito bela. Cercada de águas
oceânicas por todos os lados, a cidade torna-se uma ilha deslumbrante. Belas
praias. Gentes bonitas. Culinária riquíssima. Poetas, escritores e uma história
literária fantástica. Há, ainda, uma lenda que, contada, emociona e encanta.
Com forte influência francesa, a
ilha de Upaon-Açú já foi berço da intelectualidade brasileira e guarda, no seu
seio, um orgulho histórico-cultural acima de tudo romântico, pela sua poesia,
pela sua arte literária e pela sua sensibilidade criativa. Ando pelas praias,
por ruas modernas e pelo Centro Histórico e sinto-me impulsionado pela
inspiração que o brilho de seus casarões me proporciona. Sinto a emoção que
qualquer poeta ou escritor sente olhando sua beleza cultural desenhada na arte
de antigos prédios coloniais portugueses. Aliás, maranhenses mesmo.
O céu de São Luís parece reluzir
mais límpido que o céu de outras cidades históricas do Brasil. Os pássaros,
aqui, parecem ter, em seus cantos, melodia mais refinada que em outros lugares
do mundo, como diria o poeta maranhense Gonçalves Dias: Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá / Os pássaros que aqui
gorjeiam / Não gorjeiam como lá... E nesta terra de Gonçalves Dias, até os
cães parecem mais felizes, haja vista o ar puro e naturalmente saudável que respiram,
graças à aragem que vem do Atlântico e ventila seus becos e vielas. Seus poetas
são mais poetas. Inspirados. Aqui, tudo cheira arte. Tudo respira poesia e
cultura literária.
Declínio da razão literária
Tudo isso, no entanto, parece estar ameaçado
pela estúpida falta de interesse e má vontade política, ou melhor, má vontade
dos políticos. Políticos que, infelizmente, são os únicos seres que administram
tudo, em nome de uma democracia mentirosa. Eles mandam em tudo: na cultura e na
arte; na cidade e no campo; na pobreza e na riqueza; nas leis e no judiciário;
no legislativo e no executivo; no dinheiro e na falta deste. Mandam até na vida
e na morte. Eles decidem quem deve viver, e quem deve morrer.
As autoridades, ao invés de investirem na arte,
questionam: que razões levam alguém a tornar-se artista?; o que leva alguém a
querer ser escritor? Evidentemente! Se não questionam de forma verbal,
questionam na prática com suas atitudes mesquinhas, burocráticas e omissas.
Exemplo disso é o que vem acontecendo com a Feira do Livro de São Luís. Criada com
absoluto sucesso em 2007 — na gestão do
então prefeito Tadeu Palácio — pelos
livreiros de São Luís, através da Associação
dos Livreiros do Estado do Maranhão (ALEM), a feira tornou-se obrigatória
por força de uma lei municipal. Vejam isso: precisou de uma lei para forçar se
promover a cultura de livros. Em outras palavras, se faz cultura por obrigação.
Não por prazer. Como se o desenvolvimento de qualquer civilização não fosse
possível somente por meio de livros. Como se a educação não dependesse de
livros. Como se a própria literatura não vivesse de livros.
Morte da razão inteligente
Um povo que não gosta de ler, sem amor aos
livros, não tem identidade. Talvez isso explique o fato de o brasileiro gostar
de “coisa” importada americana: da arte cinematográfica à cultura da violência,
tudo é importado de “modelos” americanos. E isso é uma agressão fatal à
inteligência da civilização brasileiro.
Lamentavelmente, na literatura não se encontram
incentivo e nem vocações transmitidas de pais a filhos, por exemplo. A
identidade cultural do maranhense —
diferente de outros tempos atrás —
é solta nos labirintos das desculpas sem “pé” nem “cabeça”, nos “vales” e
“esgotos” da internet e, finalmente, da preguiça intelectual de precedentes
estranhos.
Nos tempos de Aluízio de Azevedo, Graça Aranha,
Gonçalves Dias, Dagmar Desterro, Bandeira Tribizzi, José Sarney, Carlos Cunha e
tantos outros, os jovens liam por diversão. Eles se reuniam para ler, escrever
e trocarem ideias inteligentes. O resultado disso foi que se tornaram grandes
homens e mulheres não só na arte e na literatura, mas, também, na política, nos
negócios e na liderança social em diferentes níveis.
A csasa de Aluizio de Azevedo, na rua do Sol, em São Luís. |
Hoje, a cultura da internet e outras tecnologias
viciosas estão assassinando a paixão pela leitura, pela arte literária. O
espírito criativo está declinando. A razão da cultura inteligente está morrendo
bombardeada pelo “arsenal” de lixos eletrônicos, pornográficos e violentos. Os
jovens não gostam de ler. Por isso, não sabem escrever. Nem falar. Não saber
administrar. Nem amar. Não respeitam limites. Nem o direito do outro. A
consequência disso é uma sociedade burocrática ao extremo, burocracia esta que
só serve para alimentar a corrupção, a fraude, a ganância, o poder de posse, a
violência física, política, jurídica e social.
Que exemplos se podem mencionar de violência
nesse sentido em que, aqui, está sendo colocado, na falta do hábito de leitura?
O primeiro deles é a violência política: compra de voto, corrupção, burocracia,
anseio por poder, CPIs, partidarismo, fraudes orçamentárias, má administração
das políticas públicas, superfaturamento, apadrinhamento político e favorecimento
econômico.
Depois, a violência educacional: febre de
avaliação para tudo — o atual sistema
de avaliação da educação brasileira está totalmente equivocado —,
falta de investimento na educação, escolas públicas em péssimo estado de
conservação, não investimento em pesquisa científica e acadêmica, desvios de
recursos públicos, falta de capacitação profissional, ausência de interação
escola-família, despreparo na política de relações humanas nas escolas em geral.
Um pouco mais adiante, depara-se com a violência
jurídica: leis direcionadas para beneficiar bandidos, juízes mal preparados,
promotores que se vendem, um judiciário que se presta a serviço de grupos
políticos, medidas judiciais que favorecem a corrupção.
Com a escassez da cultura de livros, prolifera a
cultura da ignorância, da estupidez, da violência física, psicológica e social.
No Brasil, ainda se confundem política com corrupção, autoridade com estupidez,
justiça com punição e vingança.
Escritores, leitura e política cultural
do livro: tempo de recordação
Chegou-se a uma geração de poucos
leitores. A criatividade literária sofre com isso. “São Luís —
dizem os intelectuais — precisa
cultivar sua cultura de bons leitores. Precisa rever sua história cultural e
preservar o que há de melhor na herança de nossa tradição literária”.
A equação da filosofia do descaso
focado na arte literária é simples: Sem incentivo à produção literária, não
haverá livros. Sem livros, não terão leitores. Sem leitores, é possível de se
ter escritores. E sem escritores, morrerá a literatura. E sem literatura....
acontecerá tudo o que sua mente for capaz de imaginar do ponto de vista catastrófico.
Prevalecerão, sem dúvida, a
ignorância, a violência, a soberba, a insensatez, a insensibilidade humana.
Acho que bem se pode aplicar à literatura maranhense o pensamento de Oscar
Niemeyer: “Quando a vida se degrada, e a esperança foge do coração dos homens,
só resta recordação”. Usando-se da boa razão que teve o gênio da arquitetura
brasileira, o que nos resta é: recordar. Recordar de que um dia, lá pelo meio
da história do passado, tivemos bons escritores e poetas. Recordar dos sonhos
que um dia aqueles ancestrais da literatura sonharam para o futuro de nossa
arte literária.
Recordar da bela poesia de Humberto
de Campos. Da poética lírica de Gonçalves Dias. Do bom teatro de Arthur
Azevedo. Da bela prosa de Graça Aranha. Da poesia meio clássica e meio moderna
de Bandeira Tribuzzi. Do romancismo naturalista de Aluízio de Azevedo. Da
literatura socioeducativa de Dagmar Desterro. Das crônicas cheias de bravura e
inconformismo de Carlos Cunha. E, enfim, da mensagem literária que os jovens do
passado tentaram escrever para nós do futuro que, agora, sofre.
Em
vários estados do Brasil, por exemplo, já está sendo adotado o check-livro: os
governos municipal e estadual distribuem vale-livro para estudantes e
professores que, ao participarem das feiras, trocam-no por livros. Na primeira e na segunda feiras, ainda na gestão do ex-prefeito Tadeu Palácio, foram distribuídos 600 mil reais para aquisição de livros junto às bibliotecas do município. Fato que na administração de João Castelo não aconteceu. Espera-se que o próximo prefeito Edivaldo Holanda Junior dê o devido apoio à feira, a exemplo de Palácio.
Não espero, finalmente, que, com a
leitura desta matéria, tentam corrigir o que os homens tornaram incorrigível.
Seria, de minha parte, pretensão ingênua. Mas que os perversos que pegam o
dinheiro público da literatura e usam para “outros” fins tenham consciência de que
o que estão fazendo com a arte literária em São Luís é estupidez e maldade. Aliás,
estupidez e maldade não são nenhum elemento estranho na política do Maranhão. Em
matéria de produção literária e leitura, eles não têm nenhum interesse de
investir naquilo que liberta a mente do povo para o esclarecimento da vida
pública.
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