ENTREVISTA: PR.
FRANCISCO TAVARES
Missão sem
“fronteiras”. Mas com muitas “barreiras”
O pastor missionário
Francisco Tavares, da AD no Maranhão, fala da dificuldade de evangelizar sem
salário e diz que a igreja evangélica cruzou os braços e fechou os olhos para a obra missionária.
Por Battista
Soarez
(De São Luís - MA)
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Pr. FranciscoTavares em São Luís, onde mora com a esposa | Foto: Battista Soarez |
“EU SINTO MUITA TRISTEZA quando vejo a
forma como estão tratando a obra missionária atualmente. Uma verdadeira
injustiça”, diz o pastor Francisco Travares, 59 anos, membro da Igreja
Evangélica Assembleia de Deus no Maranhão. Tavares é casado com a missionária Eliene de Jesus
Mendes Tavares, filha de pastor, e, como muitas esposas de pastores, se mostra bastante
entristecida quando o assunto é o ambiente cristão. O casal tem dois filhos. Um
homem e uma mulher. E dois netos.
O pastor-missionário
é evangélico desde criança. Cresceu sob as orientações doutrinárias da Bíblia e
cedo ingressou numa carreira profissional promissora. Ainda muito jovem, foi
executivo de três multinacionais como Ambev, Alumar e Vale do Rio Doce. Nos
anos 1990, recebeu um convite da Assembleia de Deus em São Luís para ingressar
no ministério pastoral, o que o levou a abrir mão de um ganho de quase 50 salários
mínimos, à época, para ser pastor. Formado em química, sociologia, filosofia e
pedagogia, resolveu também se capacitar na área teológica com o intuito de
servir a igreja evangélica. Bacharelou-se em teologia, fez mestrado em antropologia
missionária e ainda fez dois doutorados.
Depois de tudo
isso, teve a primeira decepção: o acordo da igreja não foi cumprido. Com isso,
vieram as dificuldades e Tavares teve de se virar dando aulas em instituições
de ensino superior para sustentar a família. Ao ingressar na CEADEMA (Convenção
Estadual da Assembleia de Deus no Maranhão), nunca recebeu uma igreja para
pastorear. E, como pastor, nunca teve salário. Foi aí que ele resolveu ser
missionário em tempo integral, recebendo doações de voluntários para
sobreviver. Pastor Tavares tem viajado por regiões do Brasil em busca de conhecimento e capacitação para
servir a obra de Deus. Mas percebe que a idade está passando rapidamente e do
muito que aprendeu pouco tem sido aproveitado ao longo do seu sofrido
ministério.
Em entrevista ao
Leitura Livre, Tavares falou em tom
firme, deixando claro que conhecimento ele tem com fartura para administrar qualquer
situação ministerial em matéria de igreja. Nesta entrevista, fica claro que a liderança
da igreja evangélica não está sabendo aproveitar seus soldados, em detrimento de
políticas eclesiásticas míopes e assassinas de dons e ministérios em homens que
Deus chamou e capacitou para fazer a sua obra. Vamos à entrevista. Longa, mas
que vale a pena ler para conhecer a realidade do campo missionário:
LEITURA LIVRE — O
senhor é visto como um dos pastores da CEADEMA (Convenção Estadual da
Assembleia de Deus no Maranhão) mais bem preparados e dedicados na obra de Deus
na sua convenção. Para o senhor, hoje, que se preparou intelectual e
teologicamente a vida inteira para servir a igreja, o que significa fazer
missões numa denominação como a Assembleia de Deus que, no Brasil, não tem
visão missionária?
PR. FRANCISCO TAVARES — É uma
pergunta um tanto difícil de ser respondida. Porque, quando nós olhamos para a
estrutura denominacional de uma igreja do porte das Assembleias de Deus no
estado do Maranhão e comparamos essa estrutura enorme com a sua incapacidade de
ver e enxergar os campos brancos, a gente fica até constrangida de fazer algum
tipo de avaliação ou crítica, ainda que seja construtiva. Porque a disparidade,
a discrepância entre a estrutura de natureza econômica, financeira, física,
prédio, veículo etc. e a necessidade que existe no campo, é tão grande que é
como se comparássemos o padrão de vida de quem mora na África do Norte com quem
mora na Suécia, por exemplo. Porém, respondendo de uma forma mais objetiva à
sua pergunta, fazer missões nas condições em que vivo hoje e numa igreja sem
nenhuma visão missionária, significa três coisas.
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Pr. Tavares em um assentamento em Humberto de Campos | Foto: Divulgação |
L. LIVRE — Quais?
PR. TAVARES — A primeira é renunciar o básico como,
por exemplo, almoçar e jantar. Renunciar andar de carro particular ou de coletivo
e ter que andar a pé, caminhar por até 200 quilômetros como eu tenho feito ao
longo do meu ministério missionário. A segunda, significa se tornar antipático,
inimigo, como se a gente fosse um comunista, esquerdista, sanguinário, daqueles
que são considerados como se fossem stalinistas. Assim são vistos aqueles que
têm visão missionária dentro da nossa denominação. E a terceira, significa ter de
chorar, orar e derramar muitas lágrimas e dividir estas lágrimas com milhares
de pessoas carentes e necessitadas somente no Maranhão.
L. LIVRE — Tudo isso?
PR. TAVARES —
Sim. Imagine só. Quatro anos atrás, eu, juntamente com a SEPAL (Serviço de
Evangelização Para a América Latina), fizemos uma pesquisa de natureza
científica e constatamos, e posso provar, 35 mil povoados no Maranhão sem a
presença do evangelho de Jesus. Mais especificamente por parte de qualquer
igreja da Assembleia de Deus. Conheço vários municípios no sertão onde já foram
levantadas várias igrejas da Assembleia de Deus e, por falta de manutenção,
caíram as paredes literalmente. Porque, pura e simplesmente, não existe visão
de plantio de igreja. Igreja não é como uma bananeira que a gente planta e ela
cresce rápido. Uma igreja pode levar até trinta anos para crescer. Eu conheço
uma província na Suíça onde dois missionários americanos passaram trinta anos e
não ganharam uma alma para Jesus. Um dia tiveram que se aposentar. O segundo
casal que chegou lá conversou comigo e o Reinaldo Lindório. E eu, então,
perguntei para o casal: “o casal de missionários que acabou de se aposentar
passou trinta anos aqui e não ganhou uma alma para Jesus. E vocês?”. Eles
olharam para nós e responderam com toda força: “nós somos vocacionados. E vamos
continuar pregando”. E, aí, eu lembrei de Jeremias quando tiraram ele de dentro
do poço de lama e o sacudiram e perguntaram: “e agora, Jeremias?” Ele olhou nos
olhos do seu algoz e bradou: “Assim diz o Senhor..”. E continuou a pregar.
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Pr. Tavares levando ombro amigo a região pobre de Primeira Cruz | Foto: Divulgação. |
L. LIVRE — Na sua visão, o que a igreja teria de fazer
para que a obra missionária no Brasil e no mundo fosse mais efetivamente
satisfatória? No sentido de que os missionários não passassem dificuldade no
campo como o senhor vem passando ao longo do seu ministério?
PR. TAVARES — Precisamos ser mais específicos com
relação a essa questão. Porque quando o senhor fala “no mundo”, o mundo, hoje,
é ocidentalizado. E uma pequena parte que não é ocidentalizada, é radical. É
intolerante do ponto de vista religioso. Então os países ocidentalizados,
majoritariamente capitalistas, movidos por um processo de expansão
universalista chamado globalização (que envolve sociedade, economia, política e
cultura em nível mundial), acabam achatando todas as culturas. Inclusive a
cultura religiosa. Nisso a igreja é achatada pela globalização. Nisso tem
acontecido um movimento inverso, de fora para dentro da igreja. Jesus disse que
a igreja tem que ser “sal” e “luz” do mundo e no mundo. Para que ela tempere e
ilumine. Sal não é para salgar. É para temperar, ou seja, para dar aquele
equilíbrio no sabor e ficar de bom gosto. E a luz não é para queimar ou
encandear, mas para alumiar, tirar da escuridão. Só que, infelizmente, desde o
pós-guerra, o cristianismo mergulhou, a partir dos Estados Unidos, numa crise
sem precedente em que esse movimento passou a acontecer de forma contrária.
L. LIVRE — Como assim?
PR. TAVARES — Em vez de a igreja influenciar de
dentro para fora, ela embarcou não foi numa canoa, mas num transatlântico sem
leme, totalmente desgovernado, e desceu correnteza abaixo sem saber aonde vai
ancorar. Hoje ela está mergulhada numa cultura capitalista, materialista,
ocidentalizada, selvagem em que prevalece a lei do mais forte. Essa cultura
veio para dentro das igrejas.
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Pr. Tavares no sertão do Piauí, onde tem o menor IDH da América do Sul | Foto: Divulgação |
L. LIVRE — O senhor pode explicar melhor isso?
PR. TAVARES — Existiu um culturalista, sociólogo,
considerado um dos últimos pensadores de mentes mais férteis do século passado,
que foi Zygmunt Bauman. Esse homem estudou profundamente a cultura urbana.
Inclusive um dos livros dele chama-se Cultura
mundo. Ele publicou quase uma centena de livros. E ele vai falar sobre uma
sociedade líquida e modernidade líquida em que os relacionamentos são
extremamente volúveis. Fazem-se e se desfazem com a mesma facilidade. Por isso
a sociedade é líquida. Outra marca dessa sociedade líquida é que a cultura
ocidentalizada, que entrou na igreja e aí essa igreja, em vez dela influenciar,
ela passou a fazer parte desse sistema cruel e perverso. E aí a igreja
institucional é extremamente perversa, desigual, desumana, arbitrária e até
violenta. Prega e vive uma espiritualidade violenta. E eu vou lhe dar aqui um
exemplo. Se você fosse hoje um governador, esquerda ou direita, não importa, e
nunca foi crente. E eu sou crente há cinquenta anos. Mas se o presidente da
minha denominação tivesse que escolher por cortar a cabeça entre mim que sou
crente e a do governador que não é crente, ele ia optar pela minha. Ele prefere
perseguir e matar o seu próprio irmão na fé. Por que?
L. LIVRE — Sim. E por que?
PR. TAVARES — Porque a igreja institucional foi
engolida por esse sistema. E aí eu uso as palavras de Bauman que diz: “nesse
sistema só vale quem consome e quem produz”. E para piorar, o ser humano vale
menos que a banda de um frango. Porque se você for na cidade, você não vai ver
um frango no meio da rua. Mesmo que seja uma banda. Mas você vai ver seres
humanos na rua, jogados nas calçadas, mendigando, dormindo ao relento, pedindo
esmolas e ninguém ligando para eles. Sabe por que? Porque uma banda de frango
vale 20 reais e um ser humano não vale nada, inclusive para muitos crentes. E a
igreja foi engolfada nesse pântano de materialismo injusto e impiedoso o qual Jesus
rebateu o tempo todo. Enfim, a igreja institucional está operando o tempo todo
contra o reino de Deus. Por isso ela está fazendo um papel inverso ao evangelho
genuíno. Então, a igreja teria que parar e rever tudo outra vez, inclusive no
que se refere à sua administração, justiça e unidade no corpo de Cristo.
Alcançar o mundo para Cristo passa por essa reengenharia.
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Pr. Tavares recolhendo donativos pra obra missionária | Foto: Divulgação |
L. LIVRE — Com
isso o senhor está dizendo que a igreja, mergulhada nessa sociedade líquida,
está praticando um evangelho de injustiça, totalmente contrário ao evangelho da
justiça, proposto, pregado, ensinado e vivido por Jesus no seu ministério
terreno?
PR. TAVARES — Sim. Porém, quando nós falamos de
igreja, que fique bem claro que me refiro à igreja institucional. Não à igreja
corpo-espiritual, santa e fiel. A igreja pode ser entendida como instituição e
como corpo de Cristo. Mas até a igreja enquanto corpo de Cristo também pode ser
contaminada. Porque Jesus disse que o trigo cresce junto com o joio. A
diferença é que a igreja corpo de Cristo tem o Espírito de Deus. Enquanto que a
igreja institucional não tem o Espírito. Ela é como aquele esqueleto da visão
de Ezequiel no capítulo 37. Estamos construindo templos luxuosos, mas vazios de
Deus. Estamos construindo uma cultura de fossilização. Os líderes religiosos
estão gastando milhões e milhões em dinheiro construindo templos pomposos, faustos,
para deixarem para o Anticristo usar. Enquanto isso, estão negando o pão aos
missionários que estão no campo sem comida, bebendo água barrenta, se enchendo
de doenças e sem sequer uma bicicleta para andar.
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Pr. Tavares levando apoio a missionários por meio do Ombro Amigo | Foto: Divulgação |
L. LIVRE — Essa é a realidade que o senhor tem
presenciado?
PR. TAVARES — Com certeza. Nas minhas andanças pelo
sertão, tenho visto missionários morrendo de fome, comendo animais silvestres, com
seus filhos sem estudar e fazendo sandálias de garrafa pet porque não recebem ajuda das suas igrejas para trabalhar na
obra. Infelizmente, a igreja institucional se tornou tão perversa que vou revelar
aqui um dado estatístico recente do Conselho
Mundial de Missões da Inglaterra. O órgão diz que 87,88% dos recursos que
sustentam aqueles que sofrem na obra missionária vêm dos aposentados e daqueles
que vendem cheiro-verde e carvão nas feiras. Isso é uma vergonha muito grande. Isso
mostra que a igreja institucional não está fazendo nada por missões. Fechou os olhos e cruzou os braços para missões. Está de
mão encolhida. E praticando suas injustiças eclesiais. Até o ano 300 d.C., a
igreja era perseguida. A partir daí, ela passou a ser perseguidora. Com o
andamento da história, ela se constantinizou. E chegou a um momento em que de
uma vez só ela matou mais de seiscentos mil mulçumanos. Tem pastor por aí
ganhando mais de 400 mil reais de salário por mês. Sabe quem está pagando esse salário?
Vendedores de bolo e de caranguejos. Eles são fiéis dizimistas e ofertantes.
Enquanto isso, os grandes líderes estão se prostituindo com o poder político, o
poder econômico, temporal e efêmero. É lamentável. Se, hoje, eu não tivesse
feito uma decisão de natureza confessional e muito consciente, eu jamais entraria num templo
denominado cristão.
L. LIVRE — O
senhor tocou num ponto importante. Que são os altos salários de pastores e
líderes de grandes igrejas e ministérios locais. Comparativamente, têm pastores
ganhando mais de 300 mil reais por mês, como é o caso de um conhecido pastor do
interior paraense. Enquanto há pastores e missionários sofrendo na obra sem
ganhar nada, como é o seu caso e o caso de outros que não têm ganho fixo. Como
o senhor vê essa desigualdade no meio de um povo que se diz de Deus e cristão, que era para fazer tudo diferente? Inclusive pagando bem os seus missionários para
que eles pudessem andar melhor e ir mais longe na tarefa de evangelização?
PR. TAVARES — Eu vejo de duas maneiras. Antes quero
destacar que não vejo com sentimento de revolta ou de ódio. Não. Longe de mim.
Em primeiro lugar eu vejo com muita tristeza. Porque eu conheço o dia-a-dia dos
missionários no campo. Apenas 2% ou 3% de missionários ganham acima de dois
salários mínimos. A maioria ganha um salário mínimo. Pior: existem casos de missionários que,
além de ganhar pouco, o dízimo dele é descontado na fonte. E isso é ilegal. É
um confisco. Isso é apropriação indébita do alheio. Existem várias igrejas que
fazem isso na surdina. E isso me dói. Me deixa triste. Mas não me enche de
ódio. Por que? Porque eu tenho vida com Deus. A segunda forma de eu ver isto, é
como cristão. E como cristão, eu consigo ver uma mudança. Mudança a partir de
pessoas como o pastor Battista Soarez que eu o conheço há quase quarenta anos e
sei da sua capacidade e da sua forma de pensar. A partir de pessoas como
Rondaldo Almeida Lindório, um missiólogo conhecido mundialmente, mas um homem
de uma humildade rara. E outros como um grande amigo meu, Flávio Paiva, que
está na África com a família, morando no Senegal e já percorreu outros países
da África. Então, existe sim uma possibilidade, ainda que remota, de a gente se
juntar, fazer projetos, orar e se mobilizar efetivamente para fazer a coisa
acontecer como a gente entende que Deus quer fazer. O importante é a gente não
desanimar. E ficar longe daqueles que estão na igreja, mas vazios de Deus.
Estão lá apenas sugando a igreja e botando o pé em cima daqueles que realmente
têm Deus na vida e chamada divina. Mas estão neutralizados por líderes que há
tempos perderam ou nunca tiveram a visão do reino. O certo é que é difícil
fazer missões. É muito complexo ser missionário numa cultura em que o “ter” se
sobrepõe ao “ser”, contrariando, aí, uma teologia de um homem que não foi um
teólogo acadêmico, mas foi um erudito de mão cheia, que foi C. S. Lewis, autor
de Cristianismo puro e simples.
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Pr. Tavares com a esposa Eliene doando cesta básica a missionários | Foto: Divulgação |
L. LIVRE — Sim. Verdade. E que não era pastor.
PR. TAVARES — Não era pastor. Mas trabalhou três
ideias incríveis, que são a “ideia da rebelião”, a “ideia da graça” e a “ideia
de Deus”. Ele baseou-se em três questões: quem é Deus?; o que é graça?; o que é
rebelião? E quando ele fala de rebelião, ele começa por Adão e Eva. Os
primeiros humanos que se rebelaram contra Deus porque confundiram o “ser” com o
“ter”. Porque o diabo chegou de pronto e falou para eles: “vocês vão ter”. “Ser”
eles já “eram”. Agora, eles estavam diante da proposta do “ter”. E é isso que
enche e engorda os olhos da humanidade. E, nesse sentido, homens e mulheres vocacionados
para missões estão sendo estigmatizados como mendigos. Alguém chega e pergunta:
você é missionário? E você responde: sim, sou missionário. E aí logo você escuta: então você
está fadado a ser mendigo. Eu, como pastor missionário, vivo de doações, embora
seja obreiro de uma convenção rica. Não tenho salário. Agora imagine ter que
dar assistência para mais de sessenta campos missionários sem ajuda financeira
fixa, a mercê apenas de doações?! Não tenho nada.
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Com a esposa Eliene em viagem missionária levando Ombro Amigo | Foto: Divulgação |
L. LIVRE — Imagino a sua situação...
PR. TAVARES — Não tenho, sequer, nenhum jazido para
ser enterrado. Se eu morresse hoje, não teria nenhum lugar para ser sepultado.
Já fui executivo de três multinacionais. Tinha um bom salário e uma vida de
regalias. Trabalhava muito. Mas ganhava bem. Me sentia até orgulhoso. Gostava
da vida que tinha. Estaria sendo hipócrita se eu dissesse que não gostava da
vida que levava. Mas nada se compara com o que sinto hoje, ao entrar numa canoa e
pegar aquele ar puro e refrescante sobre as águas de um rio em direção ao campo
missionário, levando ajuda aos missionários que vivem ganhando almas para
Cristo sem praticamente nada, passando dificuldades com esposa e filhos, misturando
lágrimas com farinha e peixe seco. Isto é o que eu vivo. Mas sou realizado do
ponto de vista vocacional. Porém, sou entristecido em ver pessoas sofrendo no
campo, enquanto outros na cidade, que se dizem crentes, no topo da pirâmide,
estão reproduzindo modelos de tremenda desigualdade social. Não estou
generalizando. Há pessoas boas, nesse meio, que eu conheço de perto, que
contribuem com o reino, inclusive por meio de suas ideias, projetos e livros. Como
já disse, Battista Soarez, Ronaldo Almeida Lindório, Wayne Cordeiro e outros bons autores, inclusive dos EUA, são homens de Deus que estão dentro da instituição, mas que
ainda fazem a diferença. Por causa desses homens, a instituição, no seu todo,
ainda não está podre. Aqui mesmo em São Luís têm homens de Deus que ainda têm o
coração na obra, como, por exemplo, o pastor Wellington Garcez, um empresário que
sempre me ajuda, pegando um pouco do seu salário e contribui com a obra
missionária. E ainda disponibilizou as instalações da sua igreja para a nossa
Agência Missionária Ombro Amigo.
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Pr. Tavares e esposa navegam 7 horas para chegar a ilhas do Atlântico levando ombro amigo | Foto: Divulgação |
L. LIVRE — O senhor
já disse que não tem salário como pastor missionário. Como é dar assistência
para mais de sessenta campos missionários no Brasil e exterior, recebendo
apenas pequenas doações de amigos? Como funciona essa ajuda?
PR. TAVARES — Na verdade, no Brasil, são 79 casais
de missionários que dou assistência. Fora do Brasil são 12 missionários. Como
não tenho salário, as ajudas no exterior são feitas de forma remota. Por meio
de doações. À distância. No Brasil, eu vou pessoalmente. Mas todo mês Deus usa
pessoas para ajudar. Como eu disse, têm pessoas que me ajudam dentro da sua
possibilidade. Como o senhor, por exemplo, que me deu ajuda ontem. Mas eu sei
que o senhor também não tem, a não ser a sensibilidade de contribuir na medida
em que pode. Tem outros pastores que também me dão alguma coisa. Mas eu e minha
esposa precisamos comer todo dia. Tenho contas a pagar. Mas ajuda mesmo da
igreja ou da convenção eu não tenho. Nenhum centavo.
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Caixas de alimentos são levadas a missionários em regiões sem água e luz | Foto: Divulgação |
L. LIVRE — No âmbito
do ministério cristão, há muitas pessoas em crise em relação ao seu chamado.
Como o senhor vê essa questão vocacional hoje em dia?
PR. TAVARES — O senhor usou uma expressão que tem
se tornado comum e que, no entanto, é um conceito que precisa ser revisto. A palavra
“chamado”. Eu lembro de Sophie Muller,
uma missionária colombiana radicada nos EUA, que no final dos anos 1940 e 1950
trabalhou com povos indígenas no extremo norte do Amazonas. Ela chegou a
traduzir para a língua indígena praticamente todo o Novo Testamento. Essa
mulher fez um trabalho extraordinário. Plantou igrejas, sozinha. Aprendeu a língua
dos indígenas. Era uma mulher que não tinha um metro e meio de altura. Aquela
mulher levantava às quatro horas da manhã e, junto com os índios numa canoa,
saia visitando os lugares ribeirinhos. Porque para que você possa fazer uma tradução
bíblica mais ou menos próxima da realidade nativa, é preciso que você esteja
inserido no contexto daquela realidade. E quatro horas da manhã ela estava numa
canoa traduzindo os textos bíblicos. E o indígena que estava remando a canoa
dizia-lhe: “missionária, eu não estou aguentando mais”. E ela respondia: “calma,
ainda faltam dois versículos”. Depois ela voltou para os Estados Unidos e a
imprensa americana ficou encantada com o trabalho que ela fez. E um dia os
jornalistas lhe perguntaram: “missionária, qual o segredo do seu chamado?” E
ela, então, respondeu: “Eu? Eu não recebi chamado”. E aí eles perguntaram
novamente: “e como se explica esse fenômeno na sua vida, em fazer um trabalho
maravilhoso como esse, de plantio de igrejas no Brasil?”. Ela respondeu: “Eu
recebi uma ordem. E eu apenas obedeci”. Então, a explicação é esta: o chamado é
uma ordem. Quem decide amar a Deus, obedece.
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Região de Caité | Foto: Divulgação |
L. LIVRE — O senhor é mestre em antropologia
missionária. Tem dois doutorados. Um em teologia cristã. E outro em educação
teológica. Com toda essa bagagem, como o senhor analisa o quesito “identidade
cristã”?
PR. TAVARES — O
verdadeiro cristão, o cristão autêntico, não tem escolha em relação ao que Deus
estabeleceu para ele. A gente se baseia tanto no Antigo Testamento quanto no
Novo Testamento. Então, a identidade cristã tem sido solapada, principalmente
nos Estados Unidos, por aquilo que chamamos de “pós-cristianismo”. E isso tem
um reflexo direto na obra missionária. Principalmente do ponto de vista
transcultural. Para você ter uma ideia, no Brasil, nós estamos patinando como
um carro atolado, sem sair do lugar. Agora em 2022, faz vinte anos que não
conseguimos enviar seis mil missionários por ano para o campo transcultural. Ou
seja, isso representa, se comparado com a quantidade de cristãos nominais, um
avanço minimamente nanico. Quando o Brasil se arvora dizendo que tem mais de 50
milhões de evangélicos, se você pegar esse número e fizer uma correlação com o
número de enviados vocacionados para o campo missionário transcultural, isso
representa 0,001%. É como se você dividisse um em seis. E a sexta parte dessa
quantidade não chega a ser uma coisa diabólica, mas é algo inócuo do ponto de
vista missionário.
L. LIVRE — Nossa, Deus!
Sem exagero, pastor?
PR. TAVARES — Sim.
Sem nenhum exagero. Totalmente sem consistência. Quer dizer, a qualidade de
evangélicos que existe no Brasil e na América Latina, e até nos EUA, é
inversamente proporcional à quantidade de missionários enviados para o campo. E
isso está intimamente relacionado com a identidade cristã. Por exemplo, a Universidade
Mackenzie, uma das maiores de São Paulo, onde tem a maior biblioteca da América
Latina, é uma instituição cristã. Mas, infelizmente, está caminhando para o
secularismo. A maioria dos jovens que estudam na Mackenzie, na faixa etária
entre 18 a 27 anos, é formada por ateus. Não creem em Deus. São jovens da área
de ciências e tecnologias influenciados por pensamentos não-cristãos. A culpa
não está nos missionários que fundaram a instituição. Isso é uma avalanche. É
uma tendência cultural moderna no contexto das tecnologias da informação,
como teorias, internet, ideologias etc. E só quem pode frear isso é o Espírito
Santo por meio de pessoas vocacionadas. David Levingstone, missionário escocês entre as
tribos africanas, passou 40 anos servindo a Deus na obra missionária. Um dia
ele morreu. Os estrangeiros foram buscar seu corpo. Mas se depararam com uma
situação inusitada. Um nativo pegou uma espada e abriu o peito de Levingstone,
arrancou-lhe o coração e disse: “O corpo pode ser escocês. Mas o coração é
africano”. Cavou um buraco e enterrou o coração do missionário ali mesmo, no
meio das tribos, em pleno solo africano. Tempos depois, passaram uns
missionários por aquela região e perguntaram aos nativos se eles conheciam a
Cristo. E olha o que eles responderam: “Nós conhecemos um Cristo que passou por
aqui. Só que o nome dele não era Cristo. Era David Levingstone”. Isto é
identidade cristã. Se identificar com Cristo é ser parecido com Ele.
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Em região carente de Sucupira do Riachão | Foto: Divulgação |
L. LIVRE — Incrível isso. Mas
quero insistir numa coisa. Sobre o seu sustento missionário. De quanto o senhor
precisaria, hoje, para sobreviver nas suas ações missionárias? E deixar de
andar a pé, como o mesmo senhor disse, por até 200 quilômetros fazendo a obra
missionária, por meio do Projeto Ombro Amigo?
PR. TAVARES — Eu
necessitaria de oito salários mínimos por mês. Com esse dinheiro, eu
conseguiria por gasolina no carro e comer durante as viagens. Coisa que
dezesseis congregações, por exemplo, resolveriam se cada uma delas se dispusesse
a dar uma oferta de meio salário por mês. O que é tão pouco. Não seria por amor
a mim. Seria por amor à obra de Deus. Com oito salários eu viveria com o mínimo
de dignidade. Sem ter que andar a pé ou de bicicleta, porque é muito perigoso. E
a pé é muito dolorido. Eu já estourei unhas. Já teve vez que eu tive de tirar o
sapato porque a unha estava pretinha de sangue de tanto eu andar a pé. Uma vez
eu caminhei quase 70 quilômetros num dia só. Então, eu entendo, hoje, que precisaria
de um valor que fosse suficiente para colocar gasolina no meu carro, pagar a
prestação dele e manter a minha família com o básico. Nem plano de saúde eu
teria. Mas oito salários mínimos por mês daria para eu viver com o mínimo de
dignidade.
L. LIVRE — E dignidade, em
matéria de obra missionária, é uma palavra que parece estar sendo totalmente
relativizada ou até mesmo ignorada pela igreja instituição atualmente. É isso?
PR. TAVARES
— Exatamente. O campo missionário sofre, atualmente, uma tremenda injustiça.
Almas estão morrendo sem salvação, e os missionários estão passando fome e
morrendo junto com elas. Tem missionário cujos filhos não conseguem nem
estudar. Enquanto isso, pastores e líderes de grandes igrejas desfilam na
frente da gente com carros caros e recebendo salários altíssimos, sem nenhum
peso de consciência.
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Para quem desejar contribuir com o Projeto Ombro Amigo, o celular/WhatsApp do pastor Tavares é (98) 9 8448 5839.
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– Fim –