Vivemos um cristianismo sem Cristo?
Pr. Battista
Soarez
(Escritor, jornalista, sociólogo, teólogo e
professor)
HÁ MAIS OU MENOS uns 20 anos, venho me fazendo
esta pergunta: a igreja cristã deixou o Cristo do evangelho do reino de Deus do
lado de fora do seu cristianismo?
Agora em 2021, fez
21 anos que publiquei o meu livro “Crente, mas consciente: para viver o equilíbrio
entre a plenitude da fé e a dignidade humana” (Editora Hosana, SP, 2000).
Foi tão impactante, já naquela época, que um certo líder da Assembleia de Deus,
bastante conhecido, achou que eu escrevi a obra como uma indireta contra ele. O
que jamais procede, haja vista que, embora o tenha publicado no ano 2000, eu o
escrevi entre os anos de 1992 e 1993. Mas, até hoje, esse pastor não fala
direito comigo. Pois trata-me com desprezo. Outro pastor achou a mesma coisa em
relação a si, todavia não deixou de ser meu amigo.
Foi uma experiência
bem interessante porque tudo o que eu disse no conteúdo do livro naquela época
aconteceu comigo nas instituições cristãs por onde passei posteriormente. Quando,
por exemplo, trabalhei na Editora CPAD, no Rio de Janeiro. Quando estive, por
sete anos, trabalhando na CEADEMA, no Maranhão. Quando vi o que ocorreu entre o
pastor José Wellington Bezerra da Costa e o pastor Samuel Câmara. Quando tomei
conhecimento das injustiças que fizeram com o pastor César Moisés Carvalho, na
Editora CPAD, mais recentemente. E, enfim, dentre outras coisas, os
comportamentos protagonizados entre líderes evangélicos em São Luís do
Maranhão.
A propósito,
como se tratam os pastores evangélicos? As falsidades, os ciúmes, os orgulhos, as
traições, as disputas por cargos, a falta de consulta a Deus quando no ato de
tomar decisões. Só para citar alguns exemplos do que ocorre no seio da igreja.
Mas essa
inquietação não está só em mim. O teólogo Michael Horton, na sua obra “Cristianismo
sem Cristo” (Editora Cultura Cristã, SP, 2019), denuncia um cristianismo
que, na sua pregação, menciona Cristo, mas o deixa de lado, apresentando uma
mensagem trivial, sentimental e irrelevante. Um evangelho moralista, de
auto-ajuda e bem-estar pessoal. E, pior, um evangelho egoísta e sem relevância
social no contexto daquilo que Jesus pregou e ensinou.
Além de Horton,
outros teólogos da atualidade têm a mesma preocupação. Mas irei parar por aqui,
para poder ir direto ao ponto aonde quero chegar.
Basicamente, seguirei
a mesma abordagem de um recente artigo que publiquei, no Leitura Livre, sob o título “A igreja evangélica ainda é cristã?”.
A priori, percebo que o adormecimento
da igreja evangélica prepara um grupo social meramente religioso para um
doloroso choque de realidade. O grande desafio e a grande tarefa da igreja cristã
será sempre o diálogo com o seu tempo.
A nossa tarefa
principal — digo nossa porque estou incluído na ala evangélica, mesmo com uma
forma de pensar que ressona como uma crítica que busca levar a igreja a viver,
de fato, aquilo que o Senhor Jesus ensinou a partir do Sermão da Montanha — é
ajudar na elucidação da verdade, tematizando as grandes questões da atualidade.
E me parece que esse foi sempre o plano do evangelho de Jesus Cristo nas
grandes épocas da história neotestamentária.
Sem diálogo
aberto e conectivo com a sociedade em geral (aberta), o cristianismo é meramente
uma seita religiosa. Porque no momento em que a igreja confunde dogma com palavra
de Deus, ela deixa de ser agente do reino de Deus, passando a ser sinagoga de “estranhezas”
espirituais.
Mas o que é o
reino de Deus? O reino de Deus nada mais é senão a vivencialidade e o anúncio
da verdade de Cristo. Como ensinaram e praticaram os apóstolos Paulo e João, o
evangelho do reino é exatamente aberto para o mundo gentílico. E é no mundo
gentílico que o cristianismo se salva de ser uma seita religiosa. É no contexto
gentílico que a igreja cristã escapa de ser uma mera religião. Quando o
cristianismo perde a capacidade de se comunicar com o mundo, ele simplesmente se
torna uma seita.
Assim, o
evangelho do reino, sem dogmática, está aberto e pronto para dialogar com todo e
qualquer grupo social que precisa de Deus. Com dogmática, ele deixa de ser
evangelho do reino. O evangelho do reino de Deus, liberto da religião, está
pronto para dialogar com a genialidade
e a habilidade de grandes homens e
mulheres em qualquer ambiente secular. Porque o evangelho do reino tem o
espírito de Cristo. Ao passo que o evangelho religioso não tem o espírito de Cristo.
O evangelho que
tem Cristo todo mundo quer ouvir. Qualquer cultura compreende o sentido da sua
mensagem. Já o evangelho da religião é chato. Difícil de assimilar. É poluído
com tradições impertinentes e rabugices religiosas.
O evangelho do
reino, cheio de Deus, consegue dialogar, sobre qualquer assunto, com a sabedoria
do mundo cultural, filosófico e científico. Foi Jesus quem deu a ordem: “Ide
por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16.15). Isto
quer dizer que o evangelho do reino está aberto à universalidade, a todas as
culturas. É o que diz o termo grego original “etnogênesis” (cuja raiz etimológica é éthos) que, traduzido literalmente, significa todas as culturas, civilizações,
usos, costumes e hábitos, se referindo às culturas existentes, as de perto, as
de longe e as que ainda não existem, mas que virão a existir. Portanto, em
Cristo e por Cristo, todas as culturas são alcançadas, porque todas as
barreiras de comunicação com as culturas do mundo foram derrubadas. Porque o
evangelho não é religião. O evangelho é vida abundante para todo aquele que crê
em Jesus Cristo.
A
igreja-religião, vazia de Deus, não consegue dialogar com as culturas do mundo
e muito menos com as filosofias da sabedoria secular. Por isso ela se tornou um
sistema, em que pratica injustiça com seus próprios comunitários, que professam
a mesma fé. Por isso a igreja-religião é cheia de pecados. Porque a religião é
aprisionada em pecados e nela não há liberdade, como disse Jesus (Mt 23.4).
Todo sistema é
uma espécie de religião (mesmo nas sociedades ateístas e políticas), e toda
religião é um sistema. E esse é o “mundo” do qual Jesus nos falou sobre o fato de
que o mundo nos odeia (Jo 15.18-19). O mundo é o sistema. E o sistema é o
mundo. Cristo falou que o mundo nos odeia. E o mundo que nos odeia é o mundo institucionalizado.
Inclusive o mundo religioso, institucionalizado pela religião. Veja, na Bíblia
e na história, como os religiosos (fariseus, escribas e saduceus) tratavam
Jesus e seus discípulos. Veja como a igreja medieval tratava os crentes que, de
fato, criam em Deus corretamente. Veja, nos dias de hoje, como são tratados pelos
religiosos os cristãos cheios de Deus, que pregam o evangelho sem dogmas. Portanto,
o mundo que odeia quem está cheio de Deus é exatamente o mundo-sistema.
Nos dias de
Jesus, esse sistema era representado por fariseus, escribas e saduceus. Os
saduceus, além de religiosos, pertenciam ao alto escalão social e econômico da
sociedade judaica nos dias de Jesus. O escritor Flávio Josefo, que viveu
naqueles dias, fala deles. Logo, além de influência religiosa, política e
social, os saduceus tinham poder econômico, o que dificultava ainda mais
qualquer batalha em relação a eles. E o sistema é isso.
Em síntese, o
evangelho da cruz se tornou universal exatamente quando ele, por meio de uma
linguagem universal, se abriu em diálogo para o mundo totalmente livre da
dogmática judaica. O discurso do apóstolo Paulo para o mundo gentílico — greco-romano
— deu-se cada vez mais de maneira ampla, abrindo, portanto, diálogo para com a
cultura universal do mundo. Depois o cristianismo esvaziou-se de Deus e levou a
igreja medieval a pregar um evangelho sem Cristo, porque não tinha mais o
caráter do Cristo do evangelho. Com isso, protagonizou ao mundo um discurso de
ódio, uma religiosidade violenta e espiritualmente conturbada. Matou, aos
milhares, seus próprios fiéis.
Clemente de
Alexandria, na sua obra Stromata, trata da filosofia como uma
importante contribuição à reflexão cristã. A igreja de Alexandria era composta
por homens sábios e também por cristãos simples. Os cristãos simples
recriminaram-lhe perder o seu tempo com a filosofia. Eles queriam somente a fé
(despida de conhecimento), sem reflexão, sem discernimento. Obviamente, fé sem
conhecimento não tem discernimento. Então, uma fé ignorante passa a conduzi-los
e, finalmente, os crentes primitivos tornaram-se vítimas da sua própria fé sem
conhecimento.
É o que está
acontecendo hoje em dia. Somos uma igreja que não estuda, não quer saber de
conhecimento e, portanto, não tem discernimento. É o caso da igreja evangélica
de hoje, em nossos dias, na plenitude do século XXI. Os crentes — e até mesmo
pastores e líderes que deveriam dar exemplo — vivem uma espiritualidade sem
conhecimento, sem reflexão bíblico-teológica e, portanto, sem discernimento.
Oram muito. Mas não têm conhecimento para discernir o mundo espiritual. E,
assim, são facilmente enganados por espíritos malignos, que se aproveitam das
mentes vazias de conhecimento, sem discernimento, para operacionalizar o mal, as injustiças.
Diante de tudo isso, a
igreja não tem diálogo justo e honesto para com as culturas do mundo. Não há
diálogo justo e honesto entre a verdade da fé e o momento histórico em que
vivemos. Se o cristianismo encheu-se de religião e, por isso, se esvaziou de
Deus, a igreja evangélica piorou ainda mais as coisas. Os crentes não têm
diálogo nem consigo mesmos. Não se respeitam fraternalmente. Esganam-se entre
si. Praticamos nossas injustiças entre nós mesmos, irmãos e irmãs no corpo de
Cristo. E depois vamos ao templo celebrar nossa fé injusta e abjeta, sem
confessar nossos pecados. A boca está cheia de palavras e “louvores”, mas o
coração e a mente estão cheios de trevas e malignidades.
A única forma de
a igreja manter-se cheia de Cristo é enchendo-se de conhecimento e mantendo uma
espiritualidade de relacionamento e comunhão com Deus. Esse cristianismo que aí
está, cheio de vício religioso e embriagado por dogmas, sem reflexão teológica,
é um cristianismo sem Cristo. Sem relevância sapiencial e sem saúde espiritual.
No entanto, a
igreja, no cumprimento de sua missão, precisa do que advém dessa relevância. E
somente um profundo conhecimento sapiencial pode proporcionar um adequado encontro
e intercâmbio entre o humanismo cristão e as culturas. A igreja só tem três
maneiras de trazer Cristo de volta para dentro de si: (1) estudando
profundamente a palavra; (2) mantendo uma vida de oração em fidelidade a Deus;
(3) praticando atividades de evangelismo e missões. Nessa perspectiva, são
importantes uma renovada concepção do método teológico e o sentido da vocação
eclesial do teólogo.
O momento atual
pede uma reflexão bíblico-teológica que seja um verdadeiro conhecimento de fé —
scientia fidei — em Deus, com força
educativa e evangelizadora. A teologia tem, agora, mais do que nunca, a grande
tarefa de educar a fé dos crentes, contribuindo com lucidez ética a respeito de
sua presença e atuação no mundo. Finalmente, para fugir do cristianismo sem Cristo é preciso encher-se do Cristo sem cristianismo.
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