Espiritualidade envolvente e missão
planetária
Novas perspectivas
para uma evangelização humanitária com visão holística
Pr. Battista P. Soarez [1]
INTRODUÇÃO
O presente artigo nasceu de uma
dialética centrada no desejo e na visão que temos dos trâmites da missão cristã
que ora se volta para todos aqueles que estão inquietos sobre o futuro da
missão da igreja no mundo. Neste viés, surgem perguntas como: o que vamos
fazer? Como vamos fazer? Onde vamos fazer? Quando (em que momento) vamos fazer?
Para quem vamos fazer? Com quem vamos fazer? Para que vamos fazer?
A construção desta dialética apresenta
— dirigindo-se a pessoas dedicadas à teologia missionária praticada
principalmente no Brasil, noutros países da América Latina e em diferentes
partes do mundo — uma análise não só positiva, mas também crítica e
entusiasticamente. Isto se diz no sentido de que muitos acreditam numa prática
missionária que se move para todas as direções e vai evoluindo à medida que
surgem novos padrões e/ou novos paradigmas de mudança.
Muitos missionários que se arriscam no
campo sem muito suporte financeiro por vezes se autoquestionam se de fato a
igreja leva a sério o “ide” de Jesus da forma como Ele ensinou àqueles que o
seguiam por convicção e também porque acreditaram em tudo o que Ele disse e fez.
Eles, os missionários, também se perguntam sobre as transformações que a igreja
organizada socialmente pode realizar na sua práxis evangelizadora de hoje em
dia, e na sua práxis evangelizadora do futuro.
Como tema fundamental da Igreja de
Cristo, a evangelização se projeta de várias maneiras por uma auréola de
indiscutibilidade sobre a imutabilidade do plano de Deus para o mundo. O plano
de Deus para o mundo é o reino. A ação missionária do corpo de Cristo ocorre em
função do reino e é uma ciência sagrada robustecida por experiências diversas
no campo social-espiritual. Em tempos anteriores ― mais precisamente nos
séculos XIX e XX ― os pioneiros das missões modernas fizeram uma proposta de
teologia missionária compreendida como missiologia mundial, com suas diversas
complexidades sociais e fazeres relacionados às relações evangelísticas e humanitárias,
com uma certa tônica de antropologia social no contexto da geografia humana.[2]
Hoje podemos chamar isto de
“missiologia planetária” pelo fato de incluir-se, aí, não apenas o “mundo-espiritual”
humano, mas também a cosmologia social que abrange o cuidado humanitário em
todos os aspectos. Isto está basicamente dentro de uma dimensionalidade daquilo
que Friedrich Nietzsche chamou de a “gaia ciência” e que muitos não compreenderam
e ainda hoje não compreendem. Embora o filósofo existencialista alemão esteja
fazendo uma alusão à poesia moderna europeia, ele trata a respeito de arte,
moral, história, conhecimento, ilusão e verdade. Claro que a ideia filosófica da
morte de Deus, proclamada em parte do livro, é descartável do ponto de vista
cristão. Todavia, a análise da história, da moral, do conhecimento e da verdade
mostra uma cosmologia social que caminha na culminância de ordem e desordem, de
criação e destruição. Ou seja, um mundo assim permite que se vislumbre o
surgimento de um discurso sobre missão planetária fincada na possibilidade de
novas ordens e atividades de transformação da realidade social.
A partir desta visão social ― já no
decorrer do século XX com nítido vislumbre de projeção para o século XXI ― os
missiologistas mais dedicados propuseram uma prática missionária que pudesse
sair do gueto de sua própria confissão religiosa para ser capaz de falar a toda
a sociedade.[3] Isto é,
uma sociedade diversificada no seu atual estado de avanço e pluralidade. De
fato, no mundo de hoje, a prática missionária e evangelizacional não se estrita
mais no confessional e no denominacionalismo. Ela deve estar conectada no mundo
real e, portanto, na realidade do mundo com seus avanços científicos,
tecnológicos e com suas tragédias ― seja no sentido de suas necessidades no seu
estado de miséria, seja no sentido da violência no seu amplo aspecto social, comunitário
e familiar.
As perguntas mais frequentes que
fazemos no campo missionário geram respostas que nos levam a pensar num
atraente panorama: a prática missionária do “agora” e do “futuro” parece
caminhar rumo a um modelo de evangelismo envolvente, relacional e ao mesmo
tempo pluralista-unificado na diversidade dos dons espirituais ― sem nenhum
complexo tradicional de superioridade religiosa e/ou denominacionalista ―
seguindo o horizonte de uma teologia missionária voltada respectiva e
tautocronicamente para o público igreja,
para o público acadêmico e para o
público sociedade. Nesta perspectiva
a prática missionária, na lógica de sua função social, tem o objetivo de
atender às necessidades das pessoas na qualidade de sujeitos sociais passíveis
de transformação.
Logo, os missionários precisam ter
consciência planetária e consequentemente estabelecer a função social da igreja
na sua relação com o mundo. Sempre dizemos que a igreja que não tem função
social não é corpo de Cristo, uma vez que Cristo é o soberano projeto de Deus
para satisfazer as necessidades do mundo e, portanto, para transformar a
realidade espiritual-social do mundo. Quando uma pessoa se converte a Cristo e,
portanto, passa a fazer parte do corpo de Cristo, ela muda seu comportamento
social. Porque? Porque o evangelho refaz o homem tanto espiritualmente como
socialmente.
É por meio da sua função social no mundo
(amor ao próximo) que a igreja atrai o mundo para conhecer Cristo. E este é um
resultado natural: a igreja “faz” em Cristo e por Cristo e logo o mundo
reconhece a sua necessidade de viver em Deus e para Deus. A compreensão do
evangelho de Cristo leva o homem e a mulher à experiência do novo nascimento.
1.
MISSÃO PLANETÁRIA EM FACE DA POBREZA E DAS INJUSTIÇAS
Na prática missionária e
evangelizacional, o diálogo social com o público sociedade deve seguir um itinerário na história social do mundo
pós-moderno que faça brandir o martelo missionário da igreja nas células
comunitárias onde estão presentes expressões da realidade social como a
pobreza, a fome e as injustiças. O mundo pós-moderno é o mundo atual com seus
protagonismos da realidade social.[4]
Ou seja, o mundo que nos permite percorrer pelos horizontes que estão diante de
nossos olhos. Nasce, aqui, uma visão de evangelho, de reino e de mundo que
podemos chamar de missão planetária por causa da pluralidade de
expressões sociais que ela é capaz de abranger.
Por um lado, a profunda evolução das
estratégias missionárias no contexto da realidade social nos leva a passar por
experiências espirituais que, nos tempos de hoje, têm gerado um espelho social
verificador do ritmo de seu encontro com outras realidades missiológicas longe
dos ciúmes e dos egoísmos eclesiais. E longe, também, das divisões que
historicamente têm enfraquecido o corpo de Cristo e, consequentemente, também
têm feito minguar o volume de produção em matéria de resultados.
Por outro lado, temos de pensar que
essa evolução de estratégias missionárias sempre estará se renovando. Nunca vão
estar concluídas. Mas que, antes, novas e profundas transformações ocorrerão no
mundo. Isto significa que é a própria evolução das sociedades simples (no âmbito da família)[5]
e das sociedades complexas (no âmbito
da sociedade evoluída cultural, educacional, científica e tecnologicamente) bem
como da humanidade global é que está impulsionando as transformações
incessantes das estratégicas missionárias.
Houve uma época em que cada segmento
religioso pensava e levava o povo a pensar que fora do seu gueto denominacional
não havia salvação. Parecia que sua mentalidade era muito diminuta em relação à
plenitude do evangelho. E, logo, o seu nível de compreensão era muito baixo. Em
que isso repercutia? Repercutia na relação da igreja com o mundo. Sua
dialética, portanto, não era social. Era uma dialética fechada, bem como o era
sua comunicação com as necessidades do mundo real.
Então os grupos religiosos divergiam
entre si. Cada um criava a sua própria doutrina e a sua própria teologia. Era
uma época exclusivista e excludente. Por conseguinte, a teologia de cada religião
dessas era um mundo fechado. Falava para se própria num circuito cerrado. Por
isso as expressões da realidade social eram ignoradas pela maioria dos grupos
religiosos. Os ensinamentos de Jesus proclamados no Sermão da Montanha eram
totalmente obscurecidos em detrimento das particularidades doutrinárias de cada
grupo religioso.
O problema é que, do ponto de vista
bíblico, a maioria dessas doutrinas era carregada de injustiças e falta de
misericórdia. Um certo ímpeto de insolência religiosa estava presente aí.
Entrementes, os ensinamentos de Jesus
Cristo no Sermão da Montanha não são simplesmente doutrinas religiosas. São
princípios universais da Justiça de Deus que não mudam e nem se alteram. As
doutrinas religiosas, sim, são passíveis de questionamentos, inaceitação e alteração.
Os princípios universais da justiça de Deus, entretanto, não têm como serem
questionados e nem alterados.[6]
No Sermão da Montanha todas as doutrinas de Jesus não são meramente doutrinas,
mas princípios universais inalteráveis e aceitáveis em qualquer cultura, em
qualquer país, em qualquer nação, em qualquer língua, em qualquer civilização e
em qualquer tempo. Todos os princípios de Jesus podem ser usados como método de
evangelização no mundo da sociedade plural, inclusive o princípio da paz e o princípio
do amor.
Nos capítulos 5, 6 e 7 do livro de
Mateus, Jesus fala de princípios universais como, por exemplo, humildade,
quebrantamento, mansidão, amor, justiça, misericórdia, pureza, paz, resignação,
perseverança, exultação, transparência, etc. Todos estes princípios são métodos
para alcançar pessoas para o Reino de Deus.
Logo, os princípios de Jesus não são
exclusivistas e nem excludentes. Também não são fechados em uma única cultura.
Isto é, não são, portanto, uma dialética fechada. Mas sim uma dialética aberta
para a diversidade de grupos sociais com uma comunicação também aberta para as
várias linguagens e culturas. Consequentemente, a comunicação e o diálogo entre
o reino de Deus e o mundo dos humanos constituem-se uma comunicação
verdadeiramente evangelizacional. Uma comunicação aberta e de alcance para
fora. Por isso ela é planetária.
Deste modo, as perspectivas e atitudes
religiosas exclusivistas e excludentes dão lugar, no âmbito das latitudes do
mundo, às missões do evangelho inclusivo. Um evangelho de combate à pobreza e
às injustiças sociais que mantém uma espiritualidade perfeitamente abundante e
ao mesmo tempo inserida no contexto social. Aqui, por conseguinte, podemos
falar de uma certa sociologia missionária, considerando o fato de que
a fome, a pobreza, a miséria e a violência são problemas sociológicos. E o
evangelho de Jesus é “inclusivista/inclusivo” no momento em que sua abordagem
alcança as pessoas em situação de vulnerabilidade social e as inclui no
contexto da vida abundante em Cristo, dando-lhes o cuidado necessário com
alimentação, saúde, moradia, trabalho, renda e educação. Desta maneira, a
missão planetária é existencial, isto é, centrada na pessoa humana. Na pessoa
do indivíduo alcançável, a quem se pode alcançar com a ação macrossocial-espiritual
do evangelho único e verdadeiro.
A missão cristã é planetária quando ela
direciona suas atividades para os problemas da cosmologia social, tendo como
foco o espelho social das necessidades humanas. A missão planetária é
planetária porque busca corrigir a excludência das injustiças sociais por via
do evangelho com a prática da sua superioridade includente. A includência
social é uma espécie de ortopraxia[7]
comunitária, em que ela se dirige para a correção das deformidades sociais como,
por exemplo, a pobreza, a fome, o analfabetismo e a violência.
A prática da ortopraxia é uma maneira eficaz de se praticar missão planetária no
âmbito do inclusivismo social como diálogo evangelizacional de participação
comunitária. Isto trabalha a lógica das funções
e dos resultados como ocorreu, por
exemplo, entre os convertidos do livro de Atos em que, muitas vezes, as funções se tornam diretrizes e os resultados se
tornam objetivos. Quando os apóstolos
usavam, por exemplo, as expressões “consolai-vos uns aos outros”, “edificai-vos
reciprocamente”, “ampareis os fracos”, “admoesteis os insubmissos”[8]
etc., estavam estabelecendo diretrizes para a funcionalidade da igreja local. Isto
se estende até hoje. A igreja, então, anuncia o evangelho da justiça de Deus para
combater as injustiças dos homens numa sociedade de injustiçados. As injustiças
dos homens são obras malignas de principados e potestades (Efésios 6.12) que neles
operam. E a única maneira de resisti-los e combater as injustiças por eles operacionalizadas
é praticando a justiça de Deus, que é fundamentada no seu grande amor. Este, de
fato, é o papel da igreja corpo de Cristo
operante no mundo.
2.
A ESPIRITUALIDADE QUE NOS MOVE “PARA” E “NA” MISSÃO PLANETÁRIA
Diante das profundas experiências
espirituais que temos tido no campo das missões evangelizacionais, temos feito
pelo menos uma pergunta provocativa: como alcançar as almas para Cristo se não estivermos
revestidos de uma espiritualidade que nos mantenha cheios de Deus? Podemos
imaginar um suposto “mover” evangelístico carregado de nossas próprias forças
individualistas, como tem acontecido em muitas épocas, mas o resultado é
cansaço e enfado. Muitos líderes de missões têm sido abatidos pelo esgotamento
espiritual. Lendo os fatos, percebemos que isso acontece quando, por uma razão
ou outra, o líder de missões tenta administrar a obra espiritual sem a
consciência daquilo que Jesus (em João 17.23) e o apóstolo Paulo (em Filipenses
4.3-6) chamam no grego de teleioo,
ambos se referindo a uma mais que
absoluta perfeição em unidade.
Em Filipenses 3.12-16, Paulo usa o
mesmo termo para tratar da nossa soberana vocação. Para ficar bem claro, o
termo teleioo é uma transliteração do
hebraico yachid que quer dizer algo
mais do que unidade absoluta que, na língua hebraica, é echad. Teleioo, portanto,
transliterado do hebraico yachid,
quer dizer um tipo de unidade que significa único.
Biblicamente, este tipo de unidade só é possível quando estamos cheios de Deus.
Em João 17.23, Jesus usa o grego teleioo
para orar ao Pai Deus dizendo assim: “... eu neles, e tu em mim, a fim de que
sejam perfeitos (ou aperfeiçoados) na unidade, para que o mundo conheça que tu
me enviaste e os amaste, como também amaste a mim”.
Nesta passagem, Jesus usa o termo teleioo para dizer que Deus em Cristo e
o Cristo em nós somos um corpo único. A espiritualidade que nos move para a
missão planetária é exatamente a espiritualidade que nos mantém perfeitamente
unidos e cheios de Deus. Esta é a nossa soberana vocação (Filipenses 3.12-16), isto
é, uma espiritualidade que nos move em Deus, para Deus e por Deus em direção ao
outro (Efésios 4.1-6). Esta espiritualidade de alcance ao próximo é uma
espiritualidade comunitária ― “comum-unitária”
― e, portanto, uma espiritualidade planetária que, à medida que nos
movimentamos, nos enche de Deus e cada vez mais nos move em Deus “para” e “na”
missão planetária. Jesus disse que este tipo de “perfeita unidade” (teleioo, transliterado do hebraico yachid) é que faz o mundo conhecer que
Jesus Cristo é o enviado de Deus como prova do seu grande amor pelo mundo (João
3.16). Este grande amor atrai o mundo para si, porque é reconhecido naqueles
que estão em Cristo e cheios de Deus.
Portanto, crentes que estão vazios de
Deus vivem na vulnerabilidade espiritual e, consequentemente, sujeitos a
estarem cheios de potestades. Os crentes que andam sob influência de potestades
― que na sua maioria são líderes ― vivem dando problema na igreja. Vivem sempre
tendo ideias antagônicas, distorcidas, discordando de tudo, e então não
conseguem entender e nem aceitar os projetos de Deus. São líderes ciumentos,
problemáticos, rancorosos e diabolicamente polêmicos. Querem administrar a obra
de Deus pela sua própria vontade; com a sua mente meramente humana cheia de
técnicas burocráticas, porém vazia de Deus.
Entretanto, vemos na missão planetária
um evangelismo cosmossocial, um evangelismo envolvente que nos mantém espiritualmente
vigilantes, em que o “nós”, cheios de Deus, caminha em direção ao “outro”
carente de Deus e de tudo. Este “outro” é antropossocial e por isso mesmo
planetário, isto é, um ser de relações universalizadas. Aqui o “eu-nós” sociológico acontece, enche-se
de Deus e torna-se sempre atraente ao “outro”
também sociológico. E é neste sentido que a espiritualidade evangelizacional é
envolvente. É envolvente porque se envolve com o “outro-comunidade” para envolvê-lo social e espiritualmente no corpo
de Cristo.
Neste aspecto, os alcançados e
alcançáveis recebem o cuidado fraternal (do grego adelfiki agápi sto ou phileo) com relação à assistência no campo da saúde, da educação,
do alimento, da geração de renda e principalmente no campo da espiritualidade.
Assim está claro que missão planetária é o cuidado holístico com o “outro”
alcançável e alcançado. O homem holístico, portanto, é o “outro-comunidade”
social.
3.
UM EVANGELISMO ENVOLVENTE COMO MÉTODO DE ALCANÇAR PESSOAS PARA CRISTO
Em primeiro lugar, vale dizer que o
evangelismo planetário é um evangelismo envolvente por se dedicar em cuidar de
pessoas: do homem holístico, planetário. É um evangelismo envolvente porque é
multiforme e relacional. Alcança o planeta-homem de todas as formas e de todas
as maneiras. Nesta prática ou método, os evangelizadores ― isto é, a igreja
como um todo ― se envolvem na comunidade e ao mesmo tempo eles envolvem a
comunidade no processo de atividades e ações integralizadas do corpo de Cristo.
A isso chamamos de macroevangelização,[9]
porque contempla holisticamente todas as necessidades humanas no âmbito da
comunidade local alcançada.
O processo de “envolver-se” e
“envolver” da igreja-missionária é automático. É simultâneo. Quando, por
exemplo, promovemos um almoço ou um jantar comunitário, entre amigos, estamos
fazendo evangelismo envolvente. Uma conversa em família com não-crentes ou uma atividade
de capacitação profissional também são um exemplo de evangelismo envolvente.
Tudo aquilo que fazemos como igreja corpo
social em Cristo no sentido de
alcançar pessoas e de suprir as necessidades humanas é evangelismo envolvente.
As ações são multiformes. E se as ações
são multiformes, o evangelismo é macro. O plano, portanto, é macro. É macro
porque é envolvente. É relacional. Alcança as pessoas da comunidade
naturalmente. David J. Hesselgrave sugere que sejam feitos contatos
comunitários. E esclarece que estes contatos comunitários podem ser feitos de
quatro maneiras primárias. A primeira delas é o que ele chama de contatos de livre associação, isto é, a
interação normal e cotidiana com indivíduos na sociedade. A segunda é a
iniciativa de afiliar-se a certos grupos locais organizados para promover os
interesses comunitários, como, por exemplo, fazer parte de associações locais.
A terceira é fazer levantamentos especiais na comunidade local. A quarta é usar
os veículos de comunicações disponíveis na comunidade.[10]
De maneira geral, participar de debates sobre os interesses e as necessidades
da comunidade local é um jeito eficaz de fazer missão planetária e uma maneira
inteligente de praticar evangelismo envolvente de excelência. Algo que gere
satisfação no coração das pessoas.
Vale pontuar que o evangelho é
“singularidade”, mas sua prática é “pluralidade” e universalizada. Isto porque
alcança o homem integral. O evangelho é singular porque é único. Não há outro
além dele. E em definitivo pertence a um único Deus e Senhor. O evangelho fez
da igreja um corpo único em Cristo, perfeito em unidade, teleioo (João 17.23). Mas sua ação é “pluralidade” porque alcança
todos os homens, todas as culturas, todos os “ethos” e “ethnos”.
Alcança o “kosmos” social de todas as
formas e maneiras. Afinal, é planetário. É planetário porque é um evangelho
macro. E é macro porque é planetário. Por isso pode ser simbolizado por uma
rede de pescar que, lançada às águas, alcança as mais variadas espécies de
peixes.
E mais: o evangelho macro é
interrelacional, carismático e solidário (cai na graça do povo). É o evangelho
que opera no universo cosmossocial, geossocial-humano e antropossial. Por isso se trata de uma teologia do evangelismo que
deve ser espontaneamente inclusivista. E deve acima de tudo ter resposta para
todas as perguntas da humanidade. Deve administrar soluções para todos os
problemas do homem holisticamente necessitado de Deus. Isto é, um homem que
precisa de Deus em todos os sentidos. Nesta perspectiva, envolvimento é mais do que se
envolver. Envolvimento é conhecer, conviver, cuidar e resolver. Só assim o pecador conhece
quem é Deus e então entende que ele precisa de Deus.
Na signa da missão planetária, o passo
ulterior ― muito diferente do evangelismo tradicional há anos praticado no
Brasil ― é o evangelismo envolvente. Contam-se, aqui, experiências de
relacionamentos com a comunidade externa, isto é, com as pessoas da comunidade
local que ainda não confessaram Jesus Cristo como Senhor. No grego, a palavra perivállon equivale ao latim involvente (ou circuítus) e quer dizer meio circundante de determinada ação. Isto,
no pensamento grego, é um relacionamento atrativo e convincente para mudança de
vida. Neste aspecto o evangelho planetário é uma libertação intracomunitária. É
um envolvimento intra-relacional com a comunidade social.
Na evangelização planetária, a igreja
não se dirige à sociedade secular atual a partir de uma perspectiva monoconfessional.
Não se entabula um debate evangelizacional de qualquer tipo com a opinião da
sociedade como conjunto e fazê-lo a partir das referências exclusivas de uma
religião, denominação ou confissão. O discurso evangelizacional é fundamentado
unicamente nos princípios universais do Evangelho de Jesus, como Senhor da
nossa salvação. Ele de fato é o Senhor da salvação daqueles que o seguem.[11]
Logo, o discurso confessional é
meramente religioso, dogmático e não tem valor espiritual no contexto da
abrangente universalidade do Senhorio de Cristo Jesus. Qualquer discurso
meramente religioso está fora de contexto histórico, é deslocado, por
desconhecimento da configuração inevitavelmente plural da sociedade atual na
sua complexidade planetária. A missão planetária da igreja, então, dirige sua
palavra e sua ação à sociedade plural, ao mundo hoje diferente e estranho e, enfim,
à humanidade que mesmo na realidade local vive uma dimensionalidade global. Não
é, portanto, um discurso evangelizacional provinciano ― limitado apenas às
ameaças de sua própria confissão e levando uma visão conservadora
denominacionalista ― que usa como referência seu próprio patrimônio simbólico.
Mas é um discurso que se faz compreender pela sociedade plural, que para ser
alcançada exige um método de evangelização multiforme, espiritual, relacional e
envolvente. Ou seja, um evangelho que se importa e que por isso é “sal da
terra” e “luz do mundo”.
A missão planetária, então, dialoga com
a sociedade plural por via da sua consciência social e humanitária. Ela é
operante junto à opinião pública. A partir dessa consciência social, que é
humanitária e holística, logo se levantou a possibilidade de uma missiologia
planetária que deveria transcender e integralizar ao mesmo tempo a identidade
diversificada e multiforme do evangelho do nosso Senhor Jesus Cristo.
Poderíamos chamar a missão planetária de missão mundial, adequando-a
panoramicamente para toda a humanidade. Neste viés, caberiam harmoniosamente
contradições de todas as dimensões cristãs. O poder no âmbito social,
financeiro e corporativo seria extremamente maior, operante e mais abundante.
No grego, a tarefa de evangelizar o
mundo é definida pela palavra euangelizõ,
conforme Atos 5.42, e é traduzida como falar das boas novas de casa em casa,
como um processo de comunicação que se faz todos os dias no templo, de lugar em
lugar e de casa em casa. Isto nada mais é senão um evangelismo envolvente,
comunitário e familiar ao mesmo tempo.
4.
UMA ESPIRITUALIDADE INCESSANTE E TRANSMISSIONÁRIA
Quando o Senhor Jesus ordenou que os
seus seguidores fossem por todo o mundo e pregassem o evangelho a toda
criatura, Ele quis dizer que isso só seria possível com poder e autoridade espiritual.
Esta autoridade está nele (Mateus 28.18). Em Atos (1.8) está escrito: “Mas
recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas
testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos
confins da terra”.
A espiritualidade da Grande Comissão
está entrelaçada ao “Ide”. A Grande Comissão não parou ali nos dias de Jesus. Ela
se estende até aos nossos dias. Em toda a história, a igreja parece não ter
encontrado o cerne hermenêutico desta compreensão. Sempre faltou algo. Vemos
que a espiritualidade do “Ide” ― principalmente no livro de Atos ― se processa
em diálogos intercomunitários, intracomunitários e transcomunitários. Não é
mais uma espiritualidade de tradição e palidez cultural ou doutrinária. Pelo
contrário, é uma espiritualidade de novidade de vida. Uma espiritualidade de
novo nascimento. Uma espiritualidade de vida abundante em Deus, com Deus e para
Deus.
O evangelho, portanto, só funcionará se
for assim: com uma espiritualidade [envolvente] de vida abundante. Sem vida
abundante não há missão planetária. E sem missão planetária, isto é, não-focada
no “outro social”, não há vida abundante. Pois estamos vivendo o tempo do
esfriamento do amor. Ou teremos vida abundante para resgatar as pessoas desse
mar de frieza afetiva ou então pouquíssimos [“delas” e de “nós”] entrarão no
reino dos céus.
Sem vida abundante, repetimos, não há
missão planetária. E sem missão planetária, centrada no “outro” e nas necessidades
do “próximo”, não há vida abundante. Não há, portanto, espiritualidade incessante
para que se execute a prática transmissionária. Quando há vida abundante, a
fluidez do evangelho na vida do cristão é natural. Tudo acontece naturalmente.
No Maranhão, ainda não se criou, por
exemplo, uma conferência inter-regional de missões. Mas há necessidade de que
isto aconteça inclusive no âmbito interdenominacional. Isto quer dizer que a
prática missionária ainda não teve uma espiritualidade criativa de experiências
em diálogo aberto para o mundo, que envolva todo mundo que tem o coração
voltado para Deus, independente da sua placa denominacional. Entretanto, é
importante que a nossa espiritualidade estabeleça diálogos sobre a diversidade
missionária, tendo como foco a realidade social das várias categorias de
comunidades.
Para que haja este diálogo, nossa
proposta é de que seja estabelecida no Maranhão uma conferência inter-regional
de missões, onde se possam discutir as missões planetárias: focadas na
realidade social do mundo. Trata-se de uma missão que transite por uma
espiritualidade de serviços, que sempre possa caminhar em direção ao próximo no
universo de suas necessidades plenamente humanas. No Maranhão, bem como em todo
o nordeste brasileiro, o contexto da celebração missionária poderá conquistar
despertamento e interesses de todas as denominações, quando não da maioria
delas, para uma união de forças e ações em prol da obra missionária.
Por meio desta possível conferência,
que deve acontecer anualmente, as iniciativas conjuntas deverão oficializar
ações transmissionárias que possam ir além da busca de unidade das várias confissões
de fé. Que possam ir, também, além do mero diálogo entre as diversas
denominações cristãs na denúncia profética contra questões políticas dominantes
como o neoliberalismo. E, ainda, crescer no aprofundamento de uma
espiritualidade macroeconômica.
A prática missionária, inerente ao
processo de ações planetárias, de certo modo mira as relações a partir de uma
teologia missionária abrangente e acima de tudo libertadora ― que não tem nada
a ver com teologia da libertação. ― Trata-se, aqui, de uma teologia missionária
que é efetivamente um discurso aberto ao outro socialmente existente, e de
práticas espirituais de tendência implicitamente inclusiva, em que se consiga
aprofundar a espiritualidade planetária e transmissionária proposta. O ano
atual é um bom momento para se pensar e trabalhar este debate, para ver se se consegue
uma prática efetiva neste sentido.
Neste prisma, o caminho poderá avançar
mais onde grupos multiculturais e indígenas mais autônomos possam se sentir
representados. Para isto, as autoridades missionárias e eclesiásticas precisam
assumir o processo de macroevangelização
e impulsionar o processo de ações transmissionárias,
passando pelo viés dialógico transcultural bem como intercultural. Na
conferência de missões inter-regionais é possível se articular estes e outros
processos da práxis missionária
emergente.
As conferências missionárias, bem como
os fóruns e outros movimentos, servirão para manter o debate e a criatividade
nas ações. As diversas entidades de missões se manifestam com o objetivo de
diálogo e acabam fomentando o desejo e as atividades no âmbito de uma
espiritualidade producente e interconectada às necessidades do indivíduo que ao
mesmo tempo é sujeito das ações transmissionárias, haja vista que ações
isoladas são pouco produtivas. De acordo com o “Ide” de Jesus, Deus quer que o
corpo de Cristo seja uno e, nesta unidade, tenha poder de ação em nível macro.
Este tipo de união é planetário. Isto é, uma união planetária em termo de
organização e poder de ação na busca contínua e criativa por resultados no
contexto de uma espiritualidade efetiva e incessantemente missionária.
É importante pontuar que, concernente
ao processo de comunicação registrado em todo o livro de Atos, a ênfase
peculiar da natureza missionária se concentra nas funções e atividades
missionárias planetárias, não com esta nomenclatura, claro, mas de todas as
maneiras com foco na plenitude das necessidades humanas. Os apóstolos
anunciavam e falavam (laleõ ― Atos
4.1, 31), evangelizavam de casa em casa (euangelizõ
― Atos 5.42), ensinavam o povo (didaskõ
― Atos 5.42), proclamavam e pregavam (kerussõ
― Atos 4.2; 8.5, 6), anunciavam publicamente (katangellõ ― Atos 4.2; 13.5, 38; 15.36; 17.3), testificavam
solenemente (diamarturomai ― Atos
2.40; 28.16, 23. Este termo aparece em todo o livro de Atos), davam testemunho
(martureõ ― Atos 1.8), arrazoavam,
argumentavam e discutiam (dialegomai ―
Atos 17.2, 3, 17; 18.4, 19; 19.8-10; 24.24, 25).
Logo, o evangelho da missão planetária
foca o homem no âmbito antropossocial (compreendendo sua cultura social) e no
âmbito geossocial (compreendendo a sua ação na terra no seu aspecto formal,
fisiológico, ecológico, biológico, produtivo, populacional, político etc.).
Nesta perspectiva, a missão planetária acontece na lógica da igreja corpo de Cristo (espiritualidade
― abundante, cheia de Deus) versus igreja
corpo social em Cristo (funcionalidade ― de alcance para
fora). Logo, a lógica da igreja missionária é que ela é comunidade de poder, anunciando as boas novas com o acontecimento
dos sinais que são operacionalizados pelos que creem, ou os acompanharão na
medida da sua fé (Marcos 16.17, 18).
Definitivamente, a lógica da missão
planetária na prática do evangelismo envolvente é a seguinte:
a) Igreja corpo de Cristo (é espiritualidade);
b) Igreja corpo social em Cristo (é funcionalidade).
Está claro que uma igreja espiritual é efetivamente
evolvente porque se entrega à funcionalidade social no corpo de Cristo, da
mesma maneira que uma igreja envolvente
é espiritual porque exercita efetivamente os deveres espirituais no corpo
social em Cristo. A ética da espiritualidade,
então, se transforma naturalmente na ética da funcionalidade, na relação efetiva da igreja com a comunidade. E aí
o evangelismo é planetário porque penetra na universalidade do “planeta-homem”
em todos os sentidos, alcançando-o integralmente, em todo o seu universo
existencial.[12]
5.
FOCO NA SALVAÇÃO DE ALMAS. ALMAS SÃO PESSOAS
O discurso missionário para o mundo de
hoje perpassa por um diálogo aberto no campo das ciências das religiões, da
sociologia, da antropologia e da teologia que miram o fato de que, nos dias
atuais, há um certo descrédito no que concerne à maioria das sociedades em
relação às religiões. Observa-se que as sociedades seculares seguem por bases
cada vez mais fundamentadas em inovações tecnológicas, mudanças rápidas e
comunicação ultra-avançada. A igreja cristã, por vezes, normalmente se mantém
fiel às tradições e, por isso, não adequa as suas linguagens à realidade do
mundo contemporâneo.
Neste tom, algumas frentes missionárias
seguem a orientação metodológica das suas denominações, porque, geralmente, há
um código doutrinário que as impedem de aceitar o novo. Ocorre que as pessoas nas
sociedades seculares seguem a linguagem das inovações tecnológicas. Neste
sentido, a comunicação cristã perde. Mesmo os crentes leigos seguem nesta
direção. Veja que, na sua maioria, os cultos de hoje em dia são frios, sem
avivamento espiritual e de pouco compromisso com a fé genuinamente cristã. Os
relacionamentos são fragilizados, indiferentes. E isso repercute na estrutura
social-espiritual do corpo de Cristo.
Nossas experiências de evangelização
registram a necessidade de se ter sensibilidade e capacidade espiritual para
inserir as pessoas no processo da salvação. O bom senso é a compreensão quanto
à forma de se relacionar agradavelmente com as pessoas. Ou seja, saber
persuadi-las ou ensiná-las sobre a necessidade espiritual que cada ser humano
tem de aceitar a fé salvadora. Cada pessoa é um projeto evangelístico, haja
vista que cada uma tem sua individualidade; tem sua própria maneira de pensar e
agir. Como operadores do evangelho, temos que ver cada indivíduo, cada pessoa,
como sujeito. Temos de alcançá-la com a ação transformadora do Evangelho.
Envolver pessoas no plano da salvação é um processo. Um processo que exige
muito da nossa comunicação, das nossas técnicas e principalmente da
espiritualidade.
Gosto muito da hermenêutica que o
teólogo brasileiro Leonardo Boff aplica para João 3.8. Ele diz que o Espírito
Santo enche o universo e a face da terra. Sopra onde quer e, portanto, conduz o
missionário para onde quer. O missionário sempre chega mais tarde, sempre chega
depois, uma vez que, antes dele, “lá estava o Espírito Santo, na história e no
coração dos povos”.[13]
É um jeito divertido de o autor dizer
que o Espírito Santo despertou as dimensões humanas em sua integralidade da
criação:
“o
amor, o cuidado, a solidariedade, a sensibilidade por tudo o que vive, a
capacidade de captar as mensagens que nos vêm de todos os lados do universo, da
natureza, da terra e de cada pessoa humana, o sentido de colaboração e de
sofrer pelos outros, a força de gerar e de cuidar do mínimo sinal de vida, o
sentido da beleza e da estética, o encantamento, a exaltação, a alegria pura e
inocente e sua capacidade de capitar o invisível e de sentir Deus a partir do
corpo”.[14]
Há uma ética de vida humana aí. Surge a
necessidade missionária de encontrar a coerência adequada no ethos vivido e formulado com relação ao
valor decisivo para a realidade humana. Não há lógica missionária sem a visão
do ethos ― das várias culturas ― na devida
funcionalidade da missão planetária na dimensão ética, ontológica e
deontológica da vida humana.
Fazendo missões, pois, como testemunho
da história e na história é o que sucede. Antes da sua morte, Paul Tillich
costumava dizer que, hoje, não se pode estar em busca da verdade. Não pode
sequer conhecer-se a si mesmo nem conhecer sua religião, menos que conheça a de
outros. A mesma coisa dizia Paul Knitter.
Quando fazemos missões de verdade,
focadas na salvação de almas, centradas no próximo e contemplando as suas
necessidades, normalmente contrariamos a teologia sistemática em muitos pontos.
Isto porque a teologia sistemática, pensada inicialmente por Santo Agostinho,
parece limitar Deus na sua ação e no que Ele é. O problema começa quando ela, a
teologia sistemática, tenta conceituar Deus, tenta defini-lo na sua infinita
eternidade. Ao passo que Deus não se define pela intelectualidade humana. Ele
mesmo se auto-define. Ele é “o Grande Eu Sou” e/ou “Eu Sou o Que Sou”. Isto
significa que Ele “É” na plenitude eterna do “EU SOU”.
Quando a teologia sistemática tenta
definir Deus, ela simplesmente quebra o princípio da auto-definição dele
enquanto Criador Eterno, Infinito. Portanto, a definição humana de Deus não é
válida porque Ele mesmo se auto-define.
Diante disto, a prática missionária
verdadeiramente bíblica alcança o homem na sua dimensionalidade social e
antropológica de uma maneira tal que vai além daquilo que a teologia
sistemática define. Entendemos que a experiência e o contato da igreja com a
sociedade plural transformam a comunidade alcançada e sua vivência social e,
assim, direcionam tal comunidade a um novo modo de compreender o panorama do
evangelho e, obviamente, entender a necessidade de se inserir no mistério da
salvação. Este mistério, como disse Tillich, estará clarificado como discurso a
partir de novos métodos de evangelização.
Categorias confessionais não servem
para salvação de almas. Não servem porque, além de meramente religiosas, não se
constituem um ambiente com visão de um evangelho planetário. É um ambiente
muito doméstico, restrito, que desconhece a pluralidade da cultura do mundo.
Desconhece as regras e os direitos do pluralismo social da humanidade. E não
colabora com a teologia missionária dos tempos atuais, que efetivamente deve
estar no nível das condições reais das sociedades do mundo atual. A igreja
corpo de Cristo se auto-reconhece como igreja corpo social em Cristo e, aí,
trabalha focada na cultura do mundo; focada em pessoas e nas suas comunidades
bem como nas suas necessidades.
A partir desta consciência planetária e
transmissionária a igreja brasileira do século XXI poderá discutir e levantar a
possibilidade de propor uma prática missionária de absoluta relevância
universal desvinculada da tradição que bitola a fé e a espiritualidade em nível
de evangelização. Trata-se de uma visão missionária mundividente e, portanto,
adequada a toda a humanidade e sem vínculo específico a nenhum segmento
religioso particular. Estamos falando de uma missiologia planetária capaz de
absorver um diálogo aberto a todas as culturas do mundo. Capaz de abranger a
todas as pessoas inseridas exatamente nessa sociedade plural.
Aqui há um caminho que é interior em
cada um de nós. O evangelho das boas novas externalizou o Espírito Santo que
agora habita em cada um de nós e se encontra irradiante, atuando no cerne do
anunciamento das boas novas da salvação no meio das culturas dos povos. Ele é o
grande responsável de levar o nome do Senhor Jesus Cristo através das ações
missionárias a cada gente. Há uma fonte que jorra as primícias do evangelho da
salvação para dentro das pessoas. Então, logo é possível mergulhar para dentro
do nome de Deus por meio da ação do Espírito Santo que se move em nós, age em
nós e que, por meio de nós, leva as pessoas a encontrarem a vida e a nascerem
de novo: da água e do Espírito (João 3.3-7). Este fenômeno do novo nascimento
nada mais é senão a ação do Cristo por meio do Espírito de Deus que age em nós
em favor do outro socialmente humano,
carente e necessitado de Deus. E ele encontra, na pessoa do Cristo, o Deus
Salvador.
Salvação é a manifestação da graça que
gera arrependimento em nosso coração e nos liga a Deus por meio do perdão que
recebemos ao confessarmos que Jesus é o Senhor, ressuscitado por Deus dentre os
mortos (Romanos 10.8, 9, 10). Este é o maior ato de justiça que a história já protagonizou
e produziu.
6.
MISSÃO PLANETÁRIA, EVANGELISMO ENVOLVENTE E FUNÇÃO SOCIAL
Não tem como falar em missão planetária
e evangelismo envolvente sem mencionar o discurso do apóstolo Paulo em Efésios
capítulo 4 e versículos de 1 a 6, onde ele recomenda à comunidade cristã
efesiense a andar de modo digno da vocação à qual foi chamada, solicitando que
os crentes andassem na missão, fazendo a boa obra “com toda humildade e
mansidão, com longanimidade, suportando uns aos outros em amor” (v. 2).
O versículo 3 fala do esforço que todos
os cristãos deveriam fazer diligentemente por preservar a unidade do Espírito
no vínculo da paz. Paulo justifica isto dizendo que “há somente um corpo e um
Espírito, como também fostes chamados numa só esperança” da vocação (v. 4),
porque “há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o
qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (vs. 5, 6).
Isto nada mais é senão espiritualidade
efetivamente relacional e, portanto, ação evangelizacional envolvente, em que
se verifica a concretude da função social
da igreja corpo de Cristo que faz
dela corpo social em Cristo e, portanto, comunidade de
poder.
No livro a A Igreja Cidadã, faz-se saber que, por muito tempo, a igreja não se
configurou como um foco do interesse da gestão eclesiástico-social e de uma
pedagogia evangelística que pudesse educar o povo numa espiritualidade
envolvente de alcance para fora. Embora constituindo-se no espaço específico
que os cristãos reservaram para veicular o conhecimento do Evangelho da
Salvação ― em que se julga importante transmiti-lo à sociedade de indivíduos carentes
de Deus e, por isso, necessitados do novo nascimento ― a igreja permaneceu
estritamente verticalizada. Agora, com o advento da modernidade e, portanto,
das transformações ultramodernas das sociedades que unem o “local” ao “global”,
as novas realidades trazem o papel da igreja para o centro do debate sobre a
função social do corpo de Cristo. Ou seja, este debate acontece ressignificando
o sentido de uma reflexão sobre a função social da igreja na formação da
identidade do cidadão do céu.
Então, o debate sobre missão planetária
tem por intenção trazer a lume a relação entre a função social da igreja
corpo de Cristo, a gestão eclesiológica, a prática do evangelismo envolvente e
a arte educativa dos princípios do evangelho de Jesus como aprofundamento da
salvação, buscando compreender o mistério da vida eterna como bem supremo para
a humanidade pecadora alcançável pela própria magnitude do evangelho de Cristo.
Ao refletirmos sobre a função social da igreja, a primeira
coisa que devemos perguntar é: que articulação existe entre igreja e sociedade
― ou, mais especificamente, entre igreja e cidadania ― a ponto de fazer dela
agente de transformação da realidade social a partir de sua prática
evangelizadora?
Bem, refletiremos o seguinte: se toda a
sociedade se caracteriza pela coexistência de várias culturas, tradições e
linguagens, a evangelização tem significação pluralizada e particular ao mesmo
tempo. A igreja, de fato, institui e trabalha o evangelho do nosso Senhor Jesus
Cristo no contexto da cidadania. A igreja é o ambiente onde as pessoas deixam
de pertencer exclusivamente a uma cultura particular para se integrarem numa
comunidade plural, mais ampla, em que os indivíduos ― como sujeitos alcançáveis
e passíveis de transformação ― estarão reunidos não por vínculos de parentesco
ou afinidade, mas pelo chamado por via do evangelho para serem inseridos na
simplicidade da vida abundante e, portanto, por via de uma consciência
planetária, para viverem em comum.
Viver em comum significa viver em comunidade (ou viver com-unidade).
A igreja, desta maneira, institui, em
outras palavras, a coabitação de pertencimento de indivíduos de diferentes
tradições e culturas sob a autoridade de um mesmo fundamento do evangelho do
reino do único Senhor, Salvador e Rei: Jesus Cristo, o Justo.
Não se pode negar que já há, sim, uma
estreita relação entre algumas ações da igreja com a sociedade, em matéria de
convivência social. Mas não existe, ainda, nenhum tipo de articulação
instituída entre igreja e a cidadania que se possa louvar ou celebrar como
missão planetária. Ou seja, é no exercício da convivência e/ou da
espiritualidade envolvente entre a igreja e os indivíduos da sociedade plural,
de diferentes culturas e linguagens, que acontecem o alcance e a transformação
dos sujeitos no contexto da salvação. É aqui que o cuidar planetário ocorre e é holístico. Afinal de contas, o
evangelho planetário fala para o indivíduo
plural, pertencente a uma comunidade
plural. Plural porque agora é global.
Com esta visão planetária, a igreja
renasce com uma nova noção de mundo, trabalha a contextualização de sua
comunicação e linguagem para então alcançar o indivíduo pertencente a uma
sociedade globalizante de cultura global transitória ― indivíduo este inserido numa
comunidade plural, que transita na diversidade de consciência e sentidos.
Estamos falando de sociedades complexas ― ou da chamada sociedade do conhecimento ― em
que nesse contexto o papel da igreja tende a assumir uma determinada
importância sem precedentes. Neste ponto, deve-se considerar também o fato de
que a igreja é uma instituição social que existe historicamente. Por muito
tempo ela pensou a sociedade no âmbito de seus modelos funcionais, porém sempre
se equivocou quanto ao método de evangelização. Ela se preocupou em cuidar mais
de si própria ― falar para si mesma ― do que com o “ide a todo mundo” e
alcançar “a toda criatura” (Marcos 16.15). “Criatura” no amplo sentido do
termo.
Sempre temos dito que a prática
missionária planetária consiste na concretização das condições que asseguram a
realização do trabalho evangelístico prático. Estas condições não se restringem
ao estritamente “teológico/pedagógico”, já que a igreja pode e deve cumprir
funções que lhe são disponibilizadas pela sociedade concreta que, por sua vez,
se apresenta como sociedade constituída por classes sociais cujos interesses
são antagônicos entre si.
É neste nível, finalmente, que o
apóstolo Paulo aconselha em Efésios 4 que os crentes devem se esforçar
“diligentemente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz” (v. 3),
uma vez que “há somente um corpo e um Espírito” (v. 4) e, também, “há um só
Senhor, uma só fé, um só batismo” (v. 5). Isto acontece, diz Paulo, porque há
“um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está
em todos” (v. 6).
Paulo está dizendo com isto que a
prática missionária e evangelística deve ser planetária e, portanto, envolvente
porque tem em torno de si condicionantes sociais, geopolíticas, antropológicas,
econômicas e espirituais que, enfim, configuram diferentes concepções de homem e
de sociedade que estabelecem, aí, uma comunidade plural. Percebem-se, então,
diferentes pressupostos acerca do papel da igreja nas suas relações com os
sujeitos sociais que a levam a pensar em métodos e técnicas de evangelização
que sejam estratégicos para alcançar cada indivíduo no meio da sociedade
pluralizada de cultura global. Isto faz da igreja corpo de Cristo igreja corpo
social em Cristo com absoluta função
social para alcançar a todos num
mundo que é complexo e, portanto, observável sob diferentes aspectos.
7.
CONCLUSÃO: COLETIVIDADE E ALCANCE PARA FORA
O corpo de Cristo é coletivo. Isto quer
dizer que ele é feito de relacionamentos entre pessoas. Em todo o Novo
Testamento, a igreja corpo de Cristo sempre foi um corpo espiritual-social em movimento, buscando relacionamentos com
o próximo. Por esta razão Jesus disse “Novo mandamento vos dou: que vos ameis
uns aos outros..., e assim conhecerão todos que sois meus discípulos” (João
13.34, 35).
Jesus parece determinar, aqui, que o
verdadeiro método para evangelizar o mundo é o amor. O amor une os salvos no
corpo de Cristo, mobiliza-os e atrai pessoas do mundo para serem inseridas no
contexto do evangelho onde, então, elas são discipuladas e cuidadas pela
mobilização e consciência do mesmo amor.
A igreja é um corpo em movimento. Por
isso as funções sociais que cabem a ela desenvolver são dinamizadas através de
relações entre as classes sociais. Aqui é interessante considerar a
contribuição de um discipulado fora dos portões da congregação que resultam em
diferentes concepções do papel da igreja enquanto grupo social e,
consequentemente, de sua função espiritual-social na construção do sujeito
social como cidadão do reino de Deus e também cidadão do mundo.
Na verdade, discipular ou pastorear
pessoas ainda não-convertidas, por meio de relacionamentos e ações envolventes,
é um tema que ainda não chegou aos interesses da igreja, mas que é
profundamente necessário nos dias atuais. De fato, a função social da igreja
estabelece sua magnitude espiritual na arte de evangelizar o mundo e deve ser
canalizada em torno do debate acerca da missão planetária. Aqui é possível
identificar papéis trazidos a lume para a igreja nas suas diferentes ações
evangelizadoras.
Nesta perspectiva, então, a função
social da igreja, praticada do lado de fora dos portões, consiste na preparação
dos não-convertidos para entenderem a sua carência de Deus e a necessidade de
confessar Jesus como Senhor e Salvador. O compromisso social da igreja, enfim,
é com os indivíduos de uma sociedade plural agonizante mergulhada em um mar de
situações-problemas, estando aí ao mesmo tempo suas demandas sociais,
existenciais e espirituais.
Referências
bibliográficas
AKKARI, Abdeljalil. Internacionalização das políticas publicas.
Patrópolis-RJ: Editora Vozes, 2011.
ATTALI, Jacques. Uma breve história do futuro. São Paulo: Novo Século, 2008.
BOFF, Leonardo. Cristianismo: o mínimo do mínimo. Petrópolis-RJ: Vozes, 2011.
GETZ, Gene A. Igreja: forma e essência. São Paulo: Vida Nova, 1994.
HESSELGRAVE, David J. Plantar igrejas: um guia para missões
nacionais e transculturais. São Paulo: Edições Vida Nova, 1995.
MORAIS, Ione. Conhecendo para guerrear. Goiânia: Kelps, 2009.
PIPPERT, Rebecca Manley. Evangelismo natural: um novo estilo de
comunicar sua fé. São Paulo: Mundo Cristo, 1999.
SOAREZ, Battista. A igreja cidadã: o evangelho real, socialmente inserido e socialmente
responsável. Curitiba-PR: AD Santos Editora, 2018.
VIDAL, Marciano. Para conhecer a ética cristã. São Paulo: Paulus, 1993.
VIGIL, José María (org.). Por uma teologia planetária. São Paulo:
Paulinas, 2011.
[1]
Pr. Battista P. Soarez. Escritor,
professor, jornalista, pedagogo, psicopedagogo, teólogo, sociólogo e assistente
social. Pós-graduado em Marketing (UCAM/RJ) e em Comunicação e reportagem
(UEMA), é autor de vários livros e artigos. Atualmente é o secretário de
missões da COMADEMA (Convenção da Assembleia de Deus no Estado do Maranhão).
[2]
Isto também pode ser chamado de antropogeografia.
A antropogeografia ou geografia humana trata de todos os
feitos terrestres resultantes da atividade do homem na complexidade social do
mundo, em que obviamente a igreja está inserida.
[3]
Marcelo Barros. A frágil transparência
do Absoluto. Teologia para uma espiritualidade transreligiosa. In José
María Vigil. Por uma teologia planetária.
São Paulo: Paulinas, 2011, p. 60.
[4]
Russell Jacoby. O fim da utopia:
política e cultura na era da apatia. Rio de Janeiro/São Paulo: Record,
2001. Lendo este autor, percebem-se fragmentos ínfimos que podem levar a
percepções mais agudas e, a partir daí, gerar uma noção mais abrangente da
realidade social e das suas expressões sociais.
[5]
David J. Hesselgrave. Plantar igrejas:
um guia para missões nacionais e transculturais. São Paulo: Edições Vida
Nova, 1995, p. 130.
[6]
Battista Soarez. A igreja cidadã: o
evangelho real, socialmente inserido e biblicamente responsável. Curitiba-PR:
AD Santos Editora, 2018, p. 222-245.
[7]
Ortopraxia é um termo usado no livro
“A Igreja Cidadã” (Battista Soarez. A Igreja Cidadã: o Evangelho real, socialmente inserido e biblicamente responsável.
Curitiba-PR: AD Santos Editora, 2018) para designar o sentido de correção de
deformações sociocomunitárias. O autor toma o termo emprestado da medicina e o
aplica na realidade social-comunitária.
[8]
Gene A. Getz. Igreja: forma e essência –
o corpo de Cristo pelos ângulos das escrituras, da história e da cultura.
São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 94.
[9]
Battista Soarez. A igreja cidadã: o
evangelho real, socialmente inserido e biblicamente responsável. Curitiba-PR:
AD Santos Editora, 2018.
[10]
David J. Hesselgrave. Plantar igrejas:
um guia de missões nacionais e transculturais. São Paulo: Edições Vida
Nova, 1995, p. 137.
[11]
Rebecca Manley Pippert. Evangelismo
natural: um novo estilo de comunicar sua fé. São Paulo: Mundo Cristão,
1999, p. 35-39.
[12]
Raimon Panikkar. Teologia da libertação
e libertação da teologia. In: José
María Vigil. Por uma teologia planetária.
São Paulo: Paulinas, 2011, p. 173-179.
[13]
Leonardo Boff. Cristianismo: o mínimo do
mínimo. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, p. 61.
[14]
Idem, p. 61.