COLUNA LEITURA LIVRE
Um conto sobre mim mesmo (1)
Sonhos, buscas e lutas a partir da minha aurora
Imagem meramente ilustrativa que retrata o lago de São Francisco dos Campos, entre os municípios de Cururupu e Santa Helena, no MA, onde vivi parte da minha infância | Foto: Reprodução. |
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DEVIDO AO MEU ATUAL ESTADO de saúde, vim para a casa da minha irmã mais velha, em Santa Helena, cidade onde me criei até aos 16 anos de idade. Nessa idade, 16 anos, mudei para São Luís, capital do estado do Maranhão, onde busquei oportunidade de estudo e trabalho e, com muita dificuldade, consegui me formar em jornalismo, teologia, pedagogia, sociologia e serviço social. Também estudei Direito. Depois fiz algumas pós-graduações.
Mas a minha paixão principal mesmo são o jornalismo e o hábito de ler que, honrosamente, me levaram ao ofício de escritor. Meu pai, Felinto Estevan Soares, tinha o sonho de me ver formado em contabilidade. Mas, apesar de eu ter estudado contábeis por um tempo, não me identifiquei com a área. O jornalismo e o ofício de escritor preenchem perfeitamente minhas aptidões. Mas foram uma grande luta e uma longa trajetória.
Aproveitando o tempo em que estou na casa da minha irmã, temos conversado muito sobre nossa família, nosso tempo de infância e, enfim, sobre outros temas como, por exemplo, saúde, espiritualidade e até sobre política. De maneira que, neste longo feriado entre Natal e Ano Novo, a gente tem falado bastante sobre coisas edificantes para nossas memórias e existencialidade.
Lembro-me de que, quando criança, nós moramos em vários lugares. Desde o pequeno lugarejo Venturosa, zona rural da cidade de Mirinzal, onde nasci, até o povoado Chapadinha, em Santa Helena, na baixada maranhense, onde vivi os anos da minha infância e pré-adolescência, minhas lembranças dão conta de acontecimentos que contribuíram para minha educação e formação de caráter junto a meus pais e meus irmãos.
Nossa casa em Chapadinha ficava numa campina bem à beira do caminho onde as pessoas passavam para vários destinos. Pescadores, vaqueiros, trabalhadores rurais e demais transeuntes passavam o dia inteiro na nossa porta. Eu tinha 4 anos de idade e lembro-me de que ficava sentado no batente da porta da rua vendo as pessoas e os movimentos. Às vezes, carros puxados a bois passavam carregados de arroz, milho, mandioca, peixe, madeira e outras coisas. Eu observava os detalhes para, depois, reproduzi-los nos brinquedos.
— Filho, tá na hora do lanche — dizia mamãe. — Vem, filho, lanchar.
Isso acontecia, também, na hora do almoço e do jantar. Papai pouco parava em casa. Ele sempre estava viajando. Negociava de lugar em lugar. Meu pai tinha animais de montaria e carga. E lembro dele com os animais carregados de peixe seco, camarão, farinha, açúcar, cachaça, mel, rapadura, carne-de-sol e outras mercadorias. Com a venda desses produtos ele sustentava a família. Minha mãe ficava em casa, cuidando dos filhos e de outros afazeres domésticos.
Normalmente, ao viajar, papai deixava um ou dois paneiros de farinha, arroz, carne e peixe salpreso, carne-de-sol e peixe seco. Ele, por vezes, passava até três meses em viagem. Quando a comida acabava, mamãe chamava as galinhas no quintal, pegava uma e fazia um delicioso cozido de galinha caipira.
Era uma vida muito privilegiada. Simples, saudável. As casas eram afastadas umas das outras. Sempre com quintais espaçosos e arborizados. As pessoas, moradoras do local, eram gente de bem. Cumprimentavam-se sempre gentilmente. Eram conversadoras e respeitosas. Os pequenos comércios, chamados de quitandas, eram os locais onde os moradores faziam suas compras. Farinha, açúcar, café, fósforo, querosene e outras coisas.
Não tinha luz elétrica. Nas casas, a gente usava lamparina. Na rua, à noite, a gente utilizava lanterna para alumiar os caminhos geralmente estreitos. Em época de lua cheia, não precisava usar lanterna. A claridade da lua era o bastante para alumiar os caminhos de areia ladeados por capins baixos e castigados pelo sol durante o verão.
Nossa casa era simples. Tinha sala, um quarto e uma cozinha. Um jirau servia para a gente lavar as louças e cortar a comida. Um fogão a lenha e um fogareiro eram os únicos meios de cozinhar. Geralmente à tarde, mamãe saía pelo mato à procura de árvores ressecadas para delas fazer lenha. Quando queríamos comer um assado na brasa, mamãe queimava a lenha até virar um braseiro. Assim assávamos o peixe, a carne e o franco caipira. Minha mãe fazia um frango caipira assado de sabor incomparável.
Ela tratava a ave cuidadosamente, temperava com todos os ingredientes de cozinha e, depois de um tempo no tempero, ela botava no fogo para ferver até refugar bem. Só então ela colocava na brasa para assar. Até ficar ao ponto. O arroz, pego na roça e pilado no pilão feito pelo meu pai, era cozido com gordura de porco. Depois éramos servidos.
— Crianças, o almoço está pronto — gritava mamãe.
Papai também era avisado de que o almoço estava na mesa. E assim, em família, fazíamos nossas refeições todos os dias, almoço e janta. Éramos felizes, e não sabíamos.
Um dia, papai e mamãe se desentenderam e decidiram se separarem, jogando fora 25 anos de casamento. Cinco filhos tiveram que engolir uma triste realidade. No dia em que meu pai foi embora, levou-me com ele. Papai e eu fomos morar no povoado Bandeira, terra dos meus avós, descendentes de escravos, quilombolas. Meu bisavô, Felinto Bandeira, recebeu carta de alforria e lhe foi dada aquela terra para que ele pudesse trabalhar e seguir a sua vida como escravo livre. Hoje, Flávio Dino, quando governador, tomou nossas terras e vendeu. Somos 66 famílias herdeiras daquele patrimônio. Nossa história está toda naquele lugar: Terra dos Bandeiras. Minha avó por parte de pai, Firmina Bandeira, morreu na década de 1970 e, por ser analfabeta, não deixou as questões resolvidas.
Mamãe e papai, agora separados, nos contavam casos de nossa família, tanto do lado materno, quanto do paterno. Somos uma mistura, diziam meus pais, de espanhóis, portugueses, escravos e indígenas. As famílias Soares e Pestana são oriundas da nobreza espanhola e portuguesa. Papai me contava histórias do meu bisavô, Antônio Marcolino Soares, que foi o primeiro promotor de justiça da cidade de Pinheiro, no Maranhão.
— Meu filho, meu avô era um homem honrado — contava papai. — Eu não o conheci, mas ouvi dizer que ele era muito justo e honesto em tudo o que fazia. Morreu picado por cobra nas Três Marias, povoado que fica entre Pinheiro e São Bento. Ele era dono das terras de Pacas.
Pacas, hoje, é uma cidade. E papai me dizia que meu bisavô gerou muitos filhos em Pinheiro e região.
— Toda mulher grávida que dizia que o filho era dele, ele procurava pela criança e a registrava — papai me dizia. — De maneira que a família Soares se tornou numerosa em Pinheiro, pelo Maranhão todo e pelo Brasil. É uma família muito grande e também muito honrada.
Lembro dos pés de árvores. Eram densos. Enormes. Eu brincava o dia inteiro ouvindo o cantarolar dos pássaros no matagal, ao fundo do nosso quintal, e era maravilhoso ver o vento sibilando nas folhagens das árvores. As galinhas, no quintal, ciscavam à procura de alimento para si e, também, para alimentar seus filhotes, Ao ouvirem o chamado das mães, os pintinhos saíam correndo para junto delas, recebendo o alimento do seu bico. Esse instinto de cuidar dos filhos está presente em todo o reino animal. Assim como nos seres humanos.
— Mãe — dizia eu — as galinhas cuidam dos pintinhos igual a senhora cuida da gente.
— Claro, filho! Mãe é mãe. Não importa se é gente ou animal.
Lembro das árvores altas que rodeavam quase todo o quintal e, nas noites de tempestades, aqueles gigantes metiam medo, balançando seus galhos enormes. No dia seguinte, porém, lá estavam: firmes, espalhando cheiro bom, gravetos e folhas que caíam e se espalhavam pelo chão ao redor. Minha mãe levantava às 5 horas da manhã para varrer aquelas folhas do quintal e queimá-las. Depois ela ia fazer o café e outros afazeres.
— Crianças — dizia ela quase gritando — levantem para tomar café e estudar. Vocês precisam estudar para terem um futuro melhor.
E, é claro, a gente obedecia. Para mim, depois do café e da lição, tudo era brinquedo. Ladeando a beira da casa, que era ampla, e não tinha cerca, enfileiravam-se as plantações e o canteiros da mamãe. Havia erva-cidreira, capim-limão, murta, cajá, goiaba, pitanga e outras fruteiras. Um pouco afastado, havia pés de manga. Eu ficava ali o dia inteiro. Só saía para ir à escola, à igreja e para o passeio com a mamãe.
No dia da separação de meus pais, tudo isso ficou para trás. Novos capítulos da minha vida iriam protagonizar senas que mudaram os rumos da minha vida. Mas sobre isto falarei nos próximos contos.
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