Translate

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

COLUNA LEITURA LIVRE | por Battista Soarez

COLUNA LEITURA LIVRE

______________________
Por Battista Soarez 
(Jornalista, escritor, psicanalista, teólogo e professor universitário)


M E M Ó R I A S
Conto sobre mim mesmo (2)
Sonhos, buscas e lutas a partir da minha aurora

Imagem meramente ilustrativa | Foto: Divulgação.

_______________________
DOTINHO, meu filho, tu queres ir com o papai? Ou queres ficar com a mamãe? — perguntaram-me minha mãe e meu pai.

Dotinho é como sou conhecido na família. Familiares e amigos íntimos me chamam assim desde a minha infância por razões de escolha de nome. Mas esta é uma outra história que não vou contar aqui.

P U B L I C I D A D E
alema-350x350

Diante da pergunta que meus pais me fizeram, eu fiquei sem entender absolutamente nada. Afinal de contas, eu só tinha 4 anos de idade. Era criança demais para entender a complexidade de um assunto tão sério. Olhei para todo o interior da casa e senti uma sensação estranha no peito, na barriga e certamente na alma. Algo como se tivessem me levando à força (e de fato estavam) do convívio e aconchego da minha mãe. Um nó entalou na minha garganta. Olhava para minha irmã Concinha, de 7 anos, e para o meu irmão Ailton, de apenas 1 aninho.

P U B L I C I D A D E

Ailton e Concinha olhavam para mim e para a mamãe com olhares compridos e tristes. Três crianças, três inocentes testemunhando o pior momento de decisão de uma família. E não podíamos fazer nada. Éramos apenas três crianças. Mas já dava para sentir a dor estranha do tamanho vazio existencial que uma separação causa. Por que tinha de me separar da minha mãe e dos meus irmãos? Era a pergunta silenciosa que a minha inocência fazia naquele momento para um vácuo do qual não saía nenhuma resposta.

Hein, filho? Responde para a mamãe — insistia ela. — Quer ficar com a mamãe ou quer ir com o papai?

Papai estava com o cavalo celado na porta de casa. Eu olhava para a mamãe e sentia uma saudade emocionalmente dolorosa antecipada. Sabia que ia ficar longe dela por muito tempo. Eu estava totalmente divido. Não queria ficar sem meu pai. Mas também não queria ficar sem a minha mãe. Olhava para o papai. Olhava para a mamãe. Não sabia o que responder. Não sabia o que decidir. Mas tinha de fazê-lo. Tinha que dizer alguma coisa. O tempo estava passando. E, na verdade, eu não queria que ele passasse. Baixei a cabeça e... Até que…

Fico com a mamãe… Não… Vou com o papai — disse eu, totalmente com coração e pensamento divididos.

A resposta de uma criança nunca corresponde à verdade num momento de separação por irresponsabilidade dos pais. Uma criança nunca quer perder nem um nem outro. Eu, na verdade, queria ficar com a mamãe, mas acabei dizendo que queria ir com o papai.

P U B L I C I D A D E
alema-350x350

Mamãe me abraçou, me dando a benção. Papai me pegou pelos dois antebraços e me jogou na garupa do cavalo. Mamãe, em pé, começou a pentear, com os dedos, os cabelos asvoaçados da minha irmã. Ailton abraçou as pernas de Concinha. Os três (mamãe, Concinha e Ailton), juntos à porta, observavam os detalhes daquela situação indesejada. Melancólica. Papai, então, montou no cavalo e a viagem começou.

Começamos a caminhar. De quando em quando, eu olhava para trás e via meus irmãos tristes. Concinha e Ailton. Mamãe começou a chorar. Papai manteve o coração endurecido. Eu olhava para trás e, a cada metro de distanciamento, nos passos rápidos daquele cavalo castanho, meu coração sentia uma dor e uma vontade de descer do animal e voltar correndo para os braços aconchegantes da minha mãe. Mas a decisão impiedosa dos dois era maior do que a minha vontade. Eu não estava entendendo nada. Eu tinha só 4 anos.

Atravessamos a campina e entramos numa estrada em meio ao matagal, com destino a São Francisco dos Campos, povoado que pertence ao município de Cururupu. No caminho, eu observava os detalhes das paisagens que se misturavam, na minha mente, com imagens e pensamentos da mamãe e de meus irmãos. O silêncio tedioso da viagem era interrompido apenas pelas pisadas do cavalo (ora sobre o chão firme, ora sobre a areia branca e macia) e pelo ciciar das cigarras que, com seu “canto” estridente, faziam barulhos no meio daquele matagal. Os passarinhos também cantavam. E o vento, vindo do grande lago São Francisco, sibilava nas folhas das árvores altas e frondosas.

P U B L I C I D A D E
alema-350x350

Pai, eu tô com sede — disse eu a certo ponto da viagem.

Meu filho tá com sede? — papai perguntou com voz de paciência e carinho.

É, eu tô com sede.

Espera mais um pouco. Logo chegaremos a um povoado onde tem gente. E aí eu peço água para meu filho beber.

Vi que ele tocava o cavalo para que apressasse os passos e logo chegássemos a uma casa para eu beber água. A sede aumentava, e eu torcia para chegar numa casa à beira da estrada. As cigarras continuavam ciciando. Os pássaros gorjeavam continuamente, inclusive o sabiá. As árvores balançavam com o soprar do vento e papai não dizia uma palavra. Nem perguntava como eu estava me sentindo. Eu pensava o tempo todo na mamãe. Depois de algum tempo, chegamos a um pequeno povoado, As casas, como na campina onde morávamos, eram distantes umas das outras. E papai encostou na primeira residência.

Êh de casa! — ele chamou à porta.

Uma senhora apareceu.

Olá, bom dia! — atendeu a mulher.

Moça, bom dia. Sem querer incomodar a senhora, me consiga um pouco de água para este filho que está com sede.

Pois não — disse a mulher cordialmente, indo para o interior da casa e voltou logo em seguida com um copo na mão.

Papai recebeu a água, entregando o copo na minha mão. Eu bebi o líquido todo. Papai também disse que queria e a mulher foi buscar mais um copo d’água. Papai bebeu com prazer, devolvendo o copo à moça.

Obrigado, senhora!

De nada — respondeu a mulher.

P U B L I C I D A D E
alema-350x350

Papai puxou a rédia do cavalo de volta ao caminho e continuamos a viagem. Caminhamos, caminhamos e, demorando mais algum tempo, chegamos num campo, logo após atravessarmos um igarapé. O revoar de pássaros do campo indicavam um paraíso de água, samambaia, mururu e abundante pasto, onde os animais se fartavam o dia inteiro. Toda espécie de pássaros tinha naquele lugar. Garça, marrecos, tetéus, jaçanãs, japerçocas, andorinhas, socós e muitas outras espécies.

Pai, que campo é este? — Perguntei, admirando toda a beleza daquela paisagem.

São Francisco dos Campos — respondeu ele.

A gente já está perto de chegar?

Ainda tá um pouco longe. Mas logo a gente chega — respondeu papai.

O pedaço de campo por onde, agora, estávamos passando era longo. Mas o frescor do vento que soprava meio forte tornava a viagem agradável. Fiz um monte de perguntas para papai e ele respondeu a todas pacientemente. Perguntei, inclusive, quando eu ia voltar para a mamãe. Ele respondeu dizendo que não sabia. Mas ele disse que quando eu quisesse era só eu dizer a ele. Atravessamos todo aquele campo e, então, chegamos ao povoado São Francisco dos Campos. As casas eram de alvenaria. Eram casas de gente rica. Casas de criadores de gado e comerciantes. A Terra dos Bandeiras, pertencente a meus bisavós e avós por parte de pai, ficava logo depois do povoado Pirapema, que faz divisa com São Francisco. Passamos os dois povoados e, então, chegamos ao Bandeira.

Papai parou numa casa de palha e taipa. Apeou do cavalo e me fez descer da garupa. Uma mulher jovem e bonita veio nos atender.

Boa tarde, comadre — saudou meu pai.

Boa tarde, meu compadre — correspondeu a mulher.

Os dois se abraçaram e papai, olhando para mim, disse:

Tome a bênção para essa mulher. Ela é minha irmã. Sua tia. E é sua madrinha.

Tomei a bênção. Ela me abençoou e indicou onde iríamos dormir. Depois fomos convidados para sentar a uma mesa para o almoço. A partir daquele momento, passei a morar na casa da minha tia-madrinha, irmã caçula do meu pai. Mas seria apenas por algum tempo.

_________________________ 

P U B L I C I D A D E

alema-350x350



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Utilize sua conta no Google (orkut, gmail) para postar comentários, ou a opção anônimo.