COLUNA LEITURA LIVRE
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Por Battista Soarez
(Pastor, teólogo, jornalista e escritor)
Caminhos da cristandade e do cristianismo
O sentido da fé em face de novos horizontes da igreja brasileira
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Imagem meramente ilustrativa | Foto: Divulgação |
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CRISTIANISMO NÃO É A MESMA COISA QUE CRISTANDADE. Cristianismo é meramente religião, vazia de Deus como qualquer outra. Cristandade é viver o chamado, cheio de Deus, de forma contínua e inteiriça, para manter o verdadeiro relacionamento com o Senhor a serviço do outro. O enderenço de Deus, portanto, é o outro, o próximo.
Em 2021, num artigo publicado na revista Avvenire, o padre e escritor italiano Mauro Leonardi disse que “quem vivia em um país cristão podia delegar à vida coletiva grande parte do trabalho pessoal que deveria fazer como indivíduo ou como núcleo familiar”. Segundo ele, “com o desaparecimento da cristandade, isso não é mais possível. Quem não está consciente das mudanças estruturais ocorridas corre o risco de se orientar por referências que não existem mais”.
Na mesma época, o cardeal Mario Grech declarou que a cristandade, entendida como sistema de vida, não existe mais e que, portanto, “a igreja quer encontrar novos caminhos”. Temos de entender, portanto, que “cristandade” e “cristianismo” são duas coisas diferentes. E vale informar que o fim da cristandade não é o fim do cristianismo. E a sugestão de alguns intelectuais eclesiásticos — na sua maioria católicos, haja vista que os líderes evangélicos e/ou protestantes pouco se importam, porque pouco estudam e pouco participam da vida social do evangelho universal — é de que a igreja pode buscar novos caminhos justamente porque o cristianismo não acabou. A cristandade, sim, essa acabou.
Na cristandade, as pessoas vivem o evangelho do reino, isto é, o evangelho de busca permanente da perfeição em Deus. No cristianismo, as pessoas vivem de qualquer jeito, vivem a diversidade religiosa, mudando constantemente de estilo de vida, comportamento e forma de pensar. Cristianismo é mera e simplesmente cultura religiosa.
Na verdade, o cristianismo é a secularização da fé. A fé se secularizou. Apenas a “Igreja Invisível” (a cristandade) permanece fiel. A gente vai a um culto cristão e percebe, com tristeza, a “coisa” mais fria do mundo. Jesus previu isso em Mateus 24.12-14: “E, por se multiplicar a iniquidade, o amor se esfriará de quase todos. Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo. E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações. Então, virá o fim”.
A cristandade ocorre quando a igreja viva permeia a sociedade civil com seus próprios valores, promovendo leis e instituições específicas e concretas. Ela ocorre quando, cheia de Deus, opina sobre o Estado e fala com autoridade: “Assim diz o Senhor...”. Autoridade é não ter de que se envergonhar. Por sua vez, o cristianismo ocorre quando ele se mundaniza e verbaliza seu engodo: “Toda religião leva a Deus”. E, então, se mistura com o mundo profano, que não tem nada a ver com vida social e nem com política.
Quando o diabo diz, por meio de vozes da esquerda política, que o Estado é laico, ele está dizendo que o Estado não precisa de Deus, não tem Deus e não quer nada com Deus. Isso tem consequências severas. Enrique Dussel (falecido em 2023) , filósofo argentino radicado no México e grande expoente da filosofia da libertaçào, disse que o diabo é o Estado. O diabo é mau e não alivia o tormento nem mesmo para os seus seguidores. O Estado, que é o diabo, monta nas costas do povo, suga o povo e vive às custas do povo, isto é, dos pobres. E o Estado é impiedosamente dominante, porque se trata do próprio diabo. Diante disso, a igreja se cala, verticaliza a sua fé num intimismo espiritual sem sentido e deixa de cumprir o seu papel como agente de poder e transformação. Proíbe os fiéis de participar da vida pública e entrega a sociedade nas mãos do diabo (o Estado) para ser governada por ele. Ele, o diabo, dá gargalhadas, zomba da ingenuidade da igreja e esnoba da sua pequenez intelectual e ausência de sabedoria e participação social.
Muitos pastores criticam a minha posição teológica, educacional e política. Mas nenhum deles, pelo menos do meu círculo de relacionamento, tem argumento para contestar meu pensamento e propor uma ideia que seja benéfica do ponto de vista participativo da igreja. Muitos indicam total ausência da igreja no que concerne à sua participação social e política. E pior ainda: não conseguem ver que Jesus instruía o povo sobre o “kósmos”, a ordem de todas as coisas criadas e o reino (governo) de Deus. Boa parte de suas parábolas era relacionada a comparativos sobre trabalhadores e administração de serviços. Isto é governo. Ele defendia os doentes e os pobres, e sempre opinava sobre cuidar deles. Os pobres sempre são a maioria. Os pobres são o povo em geral. E isto, finalmente, é governo e governabilidade.
O desaparecimento da cristandade, em vários países da Europa, em geral, é um processo já declarado, cujos resultados finais serão descobertos. Os líderes cristãos têm visão míope sobre isso, criam e apoiam movimentos que não têm nada a ver com o evangelho. São práticas espirituais totalmente vazias de Deus. As circunstâncias são históricas e cada vez mais fora da verdadeira espiritualidade.
No entanto, é dever nosso se informar, refletir, debater e se posicionar publicamente, como fiel, sobre as grandes questões da atualidade como, por exemplo, a eutanásia, as drogas, a justiça social, a questão climática, a migração, a acolhida da vida, a questão da criança e do adolescente, da mulher, do idoso, de emprego e renda. Cristandade é fazer estas e outras coisas cheio da presença do Senhor para que os beneficiários sejam alcançados, impactados, convencidos e convertidos.
Frequentemente, limitamo-nos a repetir coisas pensadas e ditas por outros que não são cristãos, renunciando a um pensamento original e correto, livre de vozes estranhas. Nunca foi tão necessária, como nos dias de hoje, a necessidade de um “pensar cristão autêntico”. Em João 17, Jesus orou pedindo ao Pai a unidade perfeita entre os seus seguidores. Em Efésios 4, Paulo instrui os cristãos numa espiritualidade unânime e vocacionada numa só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, que está em todos e se move em todos.
Evangelismo é um magistério social da igreja que não pode ser relaxado, mas, sim, dialogal, instrucional e comunitário. É urgente. Precisamos manter a obra de Deus, fazendo com que ela esteja sempre viva, perene e producente a partir da nossa fé e da frequentação viva do Evangelho do reino. É preciso, também, que tudo isso decorra de um pensamento que inspire à ação, que agregue muitos outros, que mude a atual ordem e desordem das coisas, antes que a igreja caia dentro de um "museu" existencial, como aconteceu na Europa. Pastores e líderes que não leem, que não se informam e não se formam estão sujeitos ao silêncio e à inércia em todos os sentidos.
Quando desaparece a cristandade da sociedade e do Estado, deixam de existir, consequentemente, os valores e princípios que mantêm viva a igreja. Não esqueçamos de que a principal coisa, embora insuficiente, é a formação pessoal e o compromisso cotidiano da igreja para com a sociedade que Jesus mandou fazer dela discípulos, isto é, pessoas totalmente instruídas na fé.
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