C R Ô N I C A
A
lição dos pássaros que cantam no meu quintal
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Pr. Battista Soarez
(Escritor e jornalista)
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MARIA E EU, quando nos
conhecemos, gostávamos de passear na avenida Litorânea, uma das mais belas
praias de São Luís do Maranhão. É que na Litorânea, ao cair da tarde, o som das
ondas do mar combina uma sinfonia perfeita com o cantarolar de andorinhas e
gaivotas que bailam no ar com um festejar impressionante da natureza, como se
tivessem glorificando ao Criador pela dádiva de poder voar livremente, no espaço,
respirando o ar puro de um ambiente saudável e infinito.
Na época, eu morava na avenida Atlântica, no bairro do Turú, numa casa
de esquina, bem localizada. O quintal era cheio de árvores frondosas. E a
frente também. E isto atraía várias espécies de pássaros. Eu chegava do
trabalho no começo da noite, tomava um belo banho, jantava no restaurante da
dona Francisca, depois assistia a um pouco de TV e, enfim, mergulhava numa bela
noite de sono.
No dia seguinte, pela manhã bem cedo, eu acordava com o cantar de
passarinhos. Geralmente, às 05:00 horas da manhã. Começava o dia com uma
oração. Tomava banho. Tomava café. E ia para o trabalho, entrando numa rotina
que, enfim, se repetia todos os dias.
Os pássaros sempre estavam lá, nas árvores da minha casa, pulando de
galho em galho. Eles cantavam à beça. Era como se estivessem cuidando de mim,
dada a solidão em que eu me encontrava naquele momento.
A casa era alugada. Num certo dia, na minha ausência, o dono do imóvel
chegou e cortou uma bananeira do quintal. Desatento, ele não percebeu que,
entre as folhas, tinha um ninho de rolinha fogo-apagou — uma espécie de ave columbiforme, da família dos columbídeos, muito comum no Brasil — que
estava chocando seus filhotes. Cheguei exatamente naquele momento. Os filhotes
de passarinho estavam se batendo, e o homem tentando acomodá-los numa caixa de
papelão.
— Por que o senhor fez isso, seu Ricardo? — questionei.
— Foi sem querer. Não vi. Realmente não prestei atenção — respondeu ele,
curvando-se para tampar a caixa e evitar que os bichinhos fugissem.
— E o senhor vai fazer o que com esses passarinhos? — eu quis saber.
— Vou criá-los. Depois os devolvo para a natureza.
— Não! — exclamei. — Isso não dará certo. O senhor não vai saber
alimentar esses passarinhos.
— Seu Battista, esses bichos comem de tudo. Não se preocupe.
— Está bem. Se o
senhor está dizendo, vou confiar. Mas já lhe adianto que, para os animais
silvestres, nada melhor que o ambiente natural...
— Sei — balbuciou
ele.
— Sua casa é a
natureza.
Depois de mais
algumas palavras, Ricardo colocou a caixa com os passarinhos no carro e foi
embora.
Eu, então, dei
alguns passos até o quintal e fiquei olhando para as plantas. Vi alguns pardais
saltitando entre as gramas. Outros mantinham-se no pé de acerola, pulando de
galho em galho. Olhei, olhei... e vi outros passarinhos shilreando nos galhos
das outras árvores. Entre eles, o bem-te-vi, que os indígenas brasileiros
chamam de pituã, pitaguá e, ainda, de puintaguá.
Algum tempo
depois, olhando cuidadosamente cada árvore, vi as duas rolinhas. Uma ao lado da
outra, como se estivessem sofrendo — e certamente o estavam — a tristeza pela
perda dos seus filhotes. Estavam em silêncio. Estavam sem motivo para cantar
seu “uooh-uooh”. Lembrei-me de que mamãe dizia que os animais, como os humanos,
também têm sentimento. “E sentimento dói”, dizia ela. Principalmente pela perda de filho.
Prestei bem atenção... E observei que os passarinhos estavam em estado de
introspecção. Seus pescoços estavam como se interiorizados para dentro do
corpo. Suas cabeças estavam coladas rente ao tronco.
— Vocês perderam
seus filhinhos, não foi?! — resmunguei em tom de lamento. — Aquele homem malvado os
levou. Não foi?!
Lembro do
jornalista Richard Louv. Quando ele escreveu “O princípio da natureza”, disse que, em época de rápida
transformação ambiental, econômica e social, o futuro pertencerá aos adeptos da
natureza. Àquelas pessoas, famílias, atividades comerciais e aos líderes
políticos que desenvolvem um entendimento mais profundo da natureza. E que
equilibrem o virtual com o real.
De fato. A
tristeza daqueles passarinhos denunciava sempre algo a mais que a perda de um
casal de filhos. Denunciava, também, a ação humana predatória. A tristeza dos
pássaros expandia e expande no ar perguntas sobre nossas relações com nossos
semelhantes. Diante de diferentes culturas, tecnologias, ciências e civilizações,
o mundo natural, aos poucos, vai perdendo o seu significado no decorrer de uma
época em que o déficit do convívio com a natureza assume proporções gigantescas,
conforme diz o cineasta James Cameron na mensagem central do filme “Avatar”.
Pus-me a
analisar a tristeza daqueles passarinhos e algo veio à minha mente. Há um
distúrbio coletivo universal. E esse distúrbio coletivo ameaça planetariamente
nossa saúde, ameaça nosso espírito, ameaça nossa economia, ameaça nossa vida e
ameaça, finalmente, nosso futuro e o nosso bem-estar no meio-ambiente.
Treinamos o mundo para que, num futuro bem próximo, não tenhamos mais domínio
sobre ele. Ele nos dominará e nos destruirá por meio de suas catástrofes
causadas por nós mesmos, seres humanos. Foi o que pensei naquele momento.
No dia seguinte,
acordei com o chororô dos passarinhos. “Uooh-uooh!”. Eles cantavam tristes.
Levantei ponte-pé, dirigindo-me devagarinho ao quintal. Vi os dois bem
juntinhos. Bem unidos. “Uooh-uooh!”. Balançavam as penugens. Bicavam-se
mutuamente. Como se estivessem consolando-se um ao outro. “Uooh-uooh!”. Apareci na
calçada do quintal, de repente. Eles aceitaram minha presença, de humano, e não
voaram para lá longe como de outras vezes.
Especialistas em
ciências ambientais dizem que a maioria das pessoas se sente bem ao passar mais
tempo em contato com a natureza, ouvindo os pássaros, ouvindo o barulho das
cachoeiras, ouvindo o sibilar do vento nas folhas das árvores... Pareceu-me que
aqueles passarinhos compreendiam minha fala de humano e prestavam atenção em
cada palavra minha. “Uooh-uooh!”. O choro daqueles animais mexeu com o meu
sentimento. De súbito, senti por eles algo que me levou a ter uma ideia
repentina.
— Olhem para mim
— disse eu, apontando, com o dedo indicador, para um jarro que estava pendurado
na minha janela. — Se vocês fizerem o ninho de vocês naquele jarro ali, óh,
pendurado na minha janela, prometo que ninguém vai mexer com vocês.
Eles me olhavam,
virando a cabeça de um lado para outro. Balançaram mais uma vez suas penugens.
E, em passos miúdos e rápidos, se movimentaram de um lugar para outro. Depois,
em pequenos voos, saltaram de um galho para outro. Aconchegaram-se... “Belos companheiros”, expressei no
pensamento.
Naquele momento, viajei imaginariamente de volta no tempo e pensei na época de quando eu era criança. Minha mãe, separada do meu pai, tinha
de trabalhar duro em serviços rurais para criar eu e mais dois irmãos meus. Conça
tinha sete anos. Eu, quatro anos. E Ailton, o caçula, tinha um ano. Às vezes, à
medida que eu ia crescendo, mamãe me levava para a roça ou para o mato, aonde
ela ia para quebrar coco babaçu. Eu ficava brincando com passarinhos. Outras
vezes, por ignorância, por mera falta de instrução, eu pegava um estilingue e
atirava pedras em passarinhos, sem que eles tivessem me feito nada.
— Filho, não se
atira pedras em passarinhos — dizia minha mãe.
— Por que, mãe?
— eu queria saber.
— Porque eles
não estão te fazendo nada — respondia ela. — Além disso, você pode
machucá-los... E eles, machucados, podem morrer.
Ela, então, me
explicava que os passarinhos, como os seres humanos, também têm vida. Sentem
dores. Alegria e tristeza. Têm vida, afinal.
— Mãe, eles
cuidam dos filhos? — eu perguntava, no meu jeito inocente de criança.
— Sim, filho.
Eles cuidam dos seus filhinhos. Os animais também têm amor pelos seus filhos.
Mamãe
cantarolava enquanto juntava coco babaçu para quebrá-los e tirar suas amêndoas.
Eu continuava... ora brincando, ora ajudando ela a juntar coco. No final da
tarde, naquela vida tranquila do interior, voltávamos para casa. Mamãe ia
direto para a quitanda. Vendia os quilos de coco e comprava o querosene, a
farinha, o açúcar, o café, o sabão, o fósforo, o sal. Meu padrasto, por sua
vez, chegava do lago com meio cofo de peixes. Cofo é uma espécie de cesto,
feito da palha da palmeira de babaçu, em formato bojudo e de boca larga, usado
pelos pescadores do Maranhão — e de outras regiões do Brasil — para recolher
peixes, camarões e carregar seus petrechos. Chegando em casa, mamãe cuidava
logo de tratar o peixe para a janta, apesar de passar o dia inteiro no mato,
quebrando coco ou trabalhando na roça. Muito cansada. Mas mãe é mãe. No seu
amor heróico, faz qualquer esforço para não deixar os filhos passar fome. E era
assim a nossa vida do interior. Até que um dia mudamos para a capital, e
tivemos que nos adaptar à agitada vida urbana, onde tudo passou ser diferente.
Inclusive o tipo de trabalho.
Voltei daquela
“viagem” mental ao meu tempo de criança. E, então, me dei conta de que estava
em São Luís, mergulhado numa vida totalmente urbana e pós-moderna. “Uooh-uooh!”. Olhei outra
vez para os passarinhos e, então, me recolhi ao interior da casa. Eu estava no ano
de 2004. Saí para a faculdade, onde eu cursava uma especialização em psicopedagogia
clínica e institucional, no turno da noite. Voltei mais tarde, por volta das
22h:30m. Cansado e afadigado pelo corre-corre do dia, deitei e dormi.
No dia seguinte,
às 05:00hs da manhã, acordei com um barulho estranho. Ainda meio sonolento, sem
despertar direito, levantei e percebi que o barulho era na direção da janela.
Abri a janela bem devagarinho... E logo percebi que os dois passarinhos estavam
tecendo seu ninho, exatamente no jarro da minha janela, onde eu havia dito, no
dia anterior, que era para eles fazerem o seu ninho.
Achei impressionante
a maneira como os bichinhos se ajudavam um ao outro. Fiquei parado na janela,
com as suas folhas entreabertas, observando a ação dos animais. Eles saiam e,
num pouco espaço de tempo, voltavam. E vi que, sempre que voltavam, traziam no
bico pequenos gravetos. E, numa habilidade magistral, teciam o seu ninho,
batendo as asas. Com o bico, colocavam os gravetos entranhados de uma maneira
inexplicável. Ajeitavam-nos e, com uma perfeição genial, batiam os gravetos com
as asas, como um artífice e habilidoso carpinteiro lapida, com seu
perfeccionismo profissional, a madeira para construir uma bela casa. Eu,
observando tudo aquilo, fiquei imaginando, mais uma vez, a relação dos humanos
com a natureza.
Observar os
pássaros, cantarolando ou fazendo ninhos, pode ser uma ideia que fazemos de um
dia de lazer, de terapia ou de aprendizado. De fato, sempre é algo que nos
remete às habilidades sensoriais que estão o tempo todo em conexão com a
natureza. À medida que eu observava aquela ação instintiva do casal de
passarinhos, pensava que, muitas vezes, nós, humanos, desejamos uma vida mais
plena de sentido. Mas, raramente, contribuímos positivamente para isso. Na
maioria das vezes, temos uma consciência atrofiada, uma capacidade de pensar
corretamente reduzida, no sentido de encontrar sentido na vida para preservar e
promover a vida que nos cerca.
Enquanto eu
pensava, o casal de passarinhos continuava trabalhando e lapidando seu ninho
com absoluta concentração e dedicação.
Outras vezes,
imagino, as retrações de nossa vida têm impacto direto em nossa saúde física,
mental e social. Mas, se procedêssemos diferente, se pensássemos diferente e
agíssemos diferente, nossa vida poderia ser muitíssimo enriquecida mediante
nossas relações com a natureza, começando com os nossos sentidos e
significados. Num instante, enquanto eu pensava, os passarinhos já estavam
concluindo a lapidação do seu ninho.
No outro dia,
observei e vi um ovinho naquele ninho que tinha acabado de ser construído e
lapidado, com a genial experiência de passarinho. Estava ali, no jarro
pendurado na janela da minha casa. No dia seguinte, mais um ovinho. Agora, já
não era apenas um, mas dois ovos. Mais alguns dias, já não tinham mais ovos, e sim
filhotes de passarinhos. Todos os dias, eu conversava com eles. Fazia carinho
neles. Me aproximava deles. “É possível
conviver com os animais, sem que a nossa presença represente medo para eles”,
pensei várias vezes, sempre que observava a maneira inteligente como aqueles
passarinhos cuidavam dos seus filhos, no sentido de preservar e perpetuar a
espécie. Por isso, a relação dos animais com a natureza é extremamente
diferente da nossa. Os pássaros, assim como todos os animais, têm o cuidado de
preservar a natureza como que pensando — melhor que os racionais — no futuro das
futuras gerações. Parecem pensar no que elas têm de comer no seu amanhã para
continuarem sobrevivendo e vivendo no amanhã. Já os seres humanos, em nome dos
seus confortos hiper-civilizacionais, destroem a natureza e constroem,
irracionalmente, um mundo de escassez e carestia para as gerações futuras.
Um dia, ao
chegar do trabalho, vi um dos passarinhos se movimentando circularmente em
volta do ninho, como que chamando a atenção dos filhotes e despertando-os para
a vida. O pássaro-mãe fazia carinho em um dos pequeninos. Passeava entre eles,
num gesto de ensaio, e voava do ninho para o chão. Depois, voava do chão para o
ninho. Depois, do ninho para o chão novamente. E outra vez do chão para o
ninho. Observei atentamente que isso se repetiu várias vezes.
Num dado momento,
um dos filhotes começou a se movimentar no ninho. Ficou de pé. Levantou as
asinhas. Sacudiu-as para o ar. Olhou para baixo como se estivesse pensando:
“será que consigo?”. E, então, arriscou voar do ninho para o chão. E o fez de
forma desajeitada, batendo as asinhas sem equilíbrio. Mas a mãe se juntou a ele. E
os dois, mãe e filho, começaram a caminhar rapidamente entre as gramas, lado a
lado um do outro. Eu permaneci observando aquela cena das aves. “A natureza é perfeita”, pensei
novamente. A mãe, cuidadosa, parecia ter pressa. Parecia não estar segura
ficando com o filho muito tempo no chão. Talvez temendo a ação de predadores.
Aí, de repente,
a mãe deu várias voltas ao redor do filho. Sempre com uma voz diferente, como
se estivesse lhe dizendo alguma coisa. Talvez instruindo-o sobre o fato de que tinha chegado o momento de ele se emancipar e cuidar da própria vida. Não sei ao certo. Mas imagino que os animais também conversam na sua própria linguagem. De repente, a mãe voou do chão para o
muro. Passeou de um lado para outro. Várias vezes. E voltou para o filho,
voando de volta para o chão. Deu várias voltas, novamente, ao redor do pequeno
pássaro. E voou outra vez para o muro. Fez aquilo repetidamente. Até que,
finalmente, o filhote arriscou voar para o muro. Mas, ainda desajeitado, não
conseguiu. Foi até meia altura e caiu de volta no chão. Atenta, e incrivelmente cuidadosa, a mãe voltou a ajudar o
filho.
Após algumas
tentativas, o filhote consegue voar para o muro. A mãe, como que comemorando,
passeia ao lado do filho em cima do muro e, numa tônica de cuidado, voa do muro
para uma árvore próxima. Depois, o filhote faz a mesma coisa que a mãe, e
resolve treinar voando de galho em galho, de árvore em árvore. Várias
vezes.
Prestei bem
atenção, e vi quando a mãe se pôs bem juntinho do filhote e os dois, então,
voaram para o ar, ganhando alturas e sumiram no espaço. Uma coisa me
impressionou naquela cena. Enquanto a mãe voou com o primeiro passarinho, o
outro pássaro adulto ficou no ninho com o outro filhote. E somente no dia
seguinte foi a vez de ele aprender a voar. E se repete tudo de novo com o
segundo filhote. Então, lembrei que um ovo foi posto num dia e o outro ovo no
outro dia. No reino animal, também tem a contabilidade do tempo e dos dias. O filhote do
primeiro ovo, é o primeiro a voar. É princípio da natureza. E ela nos ensina
que sempre há o momento certo para cada filho ter a sua própria liberdade.
Dia seguinte, lá
estavam os dois pássaros-pais, juntinhos novamente no ninho. Depois, vi mais
dois ovinhos. E tudo se repetia outras vezes. Foram dois anos de convivência,
eu e aqueles pássaros. Várias ninhadas, sempre de dois em dois. A amizade entre
eu e aquele casal de passarinhos foi tão intensa que chegou ao ponto de eu me
aproximar deles, passar a mão neles, conversar com eles, fazer carinho neles. E
eles tudo aceitavam, numa tônica impressionante da natureza.
Certa vez, meu
filho Nayron, então com 13 anos, me abraçou na frente dos passarinhos e eles
ficaram fazendo uma manifestação sonora diferente, numa demonstração de ciúme.
E assim nasceu o meu romance “Pássaro na
minha janela”.
Anos depois
desse maravilhoso episódio, o jornalista Richard Louv escreveria:
— Às vezes,
tenho a impressão de que o que aconteceu com meu pai — o desaparecimento da
natureza em sua vida e seu mergulho na pobreza — equivale à vida de nossa
cultura, em que a liberdade de as crianças vagarem a esmo diminuiu, quando as
famílias se fecharam em si mesmas, quando a natureza tornou-se uma abstração.
Entendo que essa equação está incompleta. O que veio primeiro? O mal-estar do
espírito e do corpo ou o afastamento da natureza? Sinceramente, não tenho
resposta para essa pergunta.
E, honestamente,
ninguém de nós, por mais sábio que seja, tem resposta para tanta
irracionalidade dos seres humanos contra a natureza.
– Fim –