COLUNA LEITURA LIVRE
A semana que não terminou
Como jovens intelectuais contribuíram com o desenvolvimento do Brasil a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, lendo, escrevendo e participando
A Semana de Arte Moderna de 1922 faz 102 anos de história e continua impactando o Brasil em todas as áreas de desenvolvimento | Foto: Reprodução/Internet |
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A SEMANA DE ARTE MODERNA, realizada em fevereiro de 1922, fez 102 anos em 2024 e até hoje não terminou de produzir seus efeitos. Nesta edição, o Leitura Livre preparou este artigo para mostrar como os movimentos do passado, de literatura e arte, encabeçados por jovens intelectuais e leitores assíduos, colocaram o Brasil no trilho do desenvolvimento que atingiu todos os setores da sociedade, desde a educação até os campos da ciência, da literatura, das artes, da tecnologia e assim por diante.
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Por conseguinte, a Semama de Arte Moderna de 1922 deu uma contribuição — senão a principal — tão grande para o desenvolvimento do Brasil que, finalmente, tudo o que temos de progresso do século XX para cá está relacionado àquele momento histórico.
Seus participantes — jovens leitores intelectuais que se dedicaram a fazer artes nos campos da literatura, da pintura, da ciência, da tecnologia etc. — saltaram para as páginas da história e foram imortalizados pelo reconhecimento da própria história. Consequentemente, o conhecimento deixou de ser apenas conhecimento e se tornou inteligência acadêmica. As pesquisas literárias se converteram ao universo científico. A poesia deixou de ser poesia e se tornou arte poética. O romance ultrapassou as fronteiras de narrativas do cotidiano de determinados personagens e saltou para o campo das contribuições educacionais e iniciação investigativa da sabedoria humana no contexto das sociedades complexas. Foi dali que saiu a ideia de criar a Universidade de São Paulo (USP), fundada em 1934, que tornou-se a maior da América Latina. E, enfim, a Semana de 22 nunca terminou em seus efeitos divergentes, simbólicos, contraditórios e conquistas que, embora possam parecer tímidas para muitos nos dias de hoje, formam uma base fundamental para todo o universo de novos vislumbres, entendimentos e descobertas no âmbito da nossa cultura, da ciência, da vida acadêmica e de cada avanço que impacta cada passo das atualidades no presente e no futuro.
Podemos afirmar que nenhum movimento artístico cultural no Brasil teve um efeito tão volumoso, tão importante, tão fenomenal e tão duradouro quanto a Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922. Os jovens intelectuais que promoveram a Semana de 22 enfrentaram ataques da dura crítica conservadora e conseguiram subverter os padrões artísticos e literários da ala tradicionalista, emplacando mudanças sociais tão significativas que o Brasil nunca mais foi o mesmo desde então.
Quando a semana completou 50 anos, em 1972, Carlos Drummond de Andrade descreveu as agitadas noites da Semana de 22 na capital paulista como "um grito no salão bem-comportado". A semana segue viva, passados mais 52 anos, produzindo seus efeitos. Estamos em 2024. São 102 anos de grito modernista que continua ecoando em salões e esquinas da sociedade brasileira, influenciando nossa cultura, nossas artes, nossa literatura, nosso pensamento e, enfim, nossa educação, nossas ciências e nossas tecnologias.
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Em 1983, quando li meu primeiro livro por conta própria — isto é, fora dos bancos da escola — me deparei com textos que falavam da Semana de Arte Moderna de 1922. Eu tinha apenas 15 anos de idade. Me empolguei com o que li sobre os jovens artistas, escritores e poetas que protagonizaram a Semana de 22. O maranhense Graça Aranha, morador de Alcântara, foi um dos principais organizadores da Semana. Então, me empolguei ainda mais. Logo me tornei leitor vorais, frequentador de livrarias e devorador de livros.
Em 1985, fui admitido na redação do Jornal de Hoje, do então senador da República João Castelo. Passei a trabalhar e conviver com grandes nomes do jornalismo maranhense. Conheci lendários escritores como Carlos Cunha e Bernardo Coelho de Almeida, autor do romance O Bequimão. Aliás, tive a honra de ser revisor, a pedido do próprio escritor, da sua última obra Éramos felizes e não sabíamos, seu livro de memórias publicado pela Editora do Senado Federal. Como lia muito, logo passei a escrever e publicar textos em quase todos os jornais de São Luís. Meu primeiro conto, publicado no JH, foi Um olhar obscuro, no qual eu descrevia personagens comuns e inusitados nas noites da capital maranhense. Todo mundo na redação leu meu texto e, a partir dali, passei a ser cobrado pelos colegas para escrever novos textos. Foi então que, com a continuidade, me tornei escritor e jornalista, inspirado nas histórias que eu lia e ouvia sobre os jovens escritores que revolucionaram o Brasil por meio das artes e da literatura. Posso dizer que, modéstia à parte, sou fruto daquele movimento literário.
Li que as primeiras notícias do que seria considerado "arte moderna" no Brasil estiveram ligadas à divulgação do Manifesto do Futurismo, que veio a público na primeira página do jornal francês Le Figaro, na edição de fevereiro de 1909, assinado pelo poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti.
A Semana de Arte Moderna de 1922 contou com brilhantes expoentes do modernismo brasileiro | Foto: Reprodução |
O manifesto era polêmico, revolucionário, paradoxal e, de certa maneira, exaltava a beleza da velocidade. Os jovens modernistas acreditavam, inclusive, que o progresso da sociedade tinha que ganhar velocidade na tendência de fazer as coisas acontecerem. O movimento das artes modernas se fazia agressivo e, então, as coisas percorriam apressadamente os corredores institucionais e, como disse, na época, Raul Bopp, no livro Movimento modernista no Brasil, "o Futurismo trouxe consigo realizações plásticas fascinantes, com a predominância de formas dinâmicas, de alto valor expressivo". Segundo ele, o ruído do modernismo, de caráter polêmico, acordou o interesse do público internacional para problemas de arte moderna.
Ecoando reclamos de uma sociedade ainda patriarcal, o manifesto pregava o desprezo pela mulher e combatia o moralismo e o feminismo. Felippo Marinetti, nos seus discursos literários, propunha uma fina sintonia entre a arte e o mundo urbano moderno, regido por eletricidade, máquinas e motores. Mas, para isso, era preciso negar as concepções artísticas do passado. Contra a literatura que exaltava a imobilidade meditativa, o entorpecimento e o sono, as palavras deviam viver em liberdade.
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Em 6 de abril de 1909, a primeira notícia sobre o Manifesto Futurista chega no Brasil e estampa a primeira página do jornal carioca Correio da Manhã, que produziu um artigo do jornalista e professor de Estudos Brasileiros de Letras da Universidade de Lisboa, Manoel de Sousa Pinto, seu correspondente em Portugal, com o título "O Futurismo", publicado originalmente em 17 de março de 1909 em Lisboa.
O professor Sousa Pinto ironizava as propostas de Marinetti e seus amigos, colocando-as ao lado de tantos outros "ismos". O comparativo ventilado por ele, com sarcasmo, era de que as obras de Marinetti eram fruto de iconoclastas da última hora, taxando-os de novos vândalos da literatura. Para ele, eram artistas insipientes, que queriam alarmar o bom burguês.
Sousa Pinto, no seu texto, dizia que "como se não bastassem o decadismo, o satanismo, o magnificentismo, o verismo, o nefebatismo e tantos outros letreiros que 'ismaram' as esquinas literárias, sem esquecer o tolismo e o brutismo, que são de todas as idades e lugares, mais um palavrão irrompe no campo intrincado da literatura, com toda a arrogância das novidades e toda a intrigadora petulância dos grandes mistérios só devassários a eleitos".
Para o professor, um novo grupo — que, segundo ele, queria entregar-se ao dispendioso e discutível prazer de alarmar o burguês — acabara de inscrever, na sua bandeira recém-arvorada, um lema novíssimo, que era o "futurismo". A briga foi grande, e deu visibilidade a uma sequência de debates e produções textuais extremadas.
Mas parece que as críticas do professor português não tiveram tanta repercussão prolongada. Cerca de, aproximadamente, dois mêses depois, em 5 de junho de 1909, o jornal A República, de Natal, Rio Grande do Norte, publicou a tradução de alguns tópicos do manifesto futurista, assinada pelo jornalista e crítico literário potiguar Manoel Dantas. Dantas, à época, destacou o seguinte: "Damos aos nossos leitores, a título de curiosidade, o manifesto entusiástico e revolucionário com que esta nova escola literária fundada pela revista internacional Poesia, de Milão, se apresenta no mundo intelectual". Também esta publicação não teve repercussão, a não ser entre alguns jornalistas.
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Em 30 de dezembro de 1909, no Jornal de Notícias, de Salvador, Bahia, foi publicada a tradução integral do manifesto, assinada pelo escritor Almachio Diniz. Alguns anos depois, Diniz publicou um livro sobre Marinetti, no qual ele faz referência ao manifesto, dizendo que publicou alguns escritos sobre a nova escola em que condenou alguns excessos e aplaudiu as inovações sensatas. Desta vez teve repercussão nos meios intelectuais de Salvador, mas ainda não reuniu personagens para que fosse promovida a Semana.
Em 1911, o jovem intelectual Oswald de Andrade, aos 21 anos de idade, lança o jornal O Pirralho, um semanário de variedades cuja redação funcionava em um sobrado da rua Quinze de Novembro, na região do Triângulo, onde funcionava o escritório imobiliário de seu pai, o senhor José Oswald de Andrade. Oswald Junior ocupava o cargo de secretário.
O jornal saía aos sábados e era polivalente em suas matérias. Falava de política nacional, notícias esportivas, crônicas sociais e, é claro, de literatura. O periódico atraiu uma súcia de poetas, escritores e jornalistas improvisados. Nesse conjunto de jovens intelectuais, estava o brilhante caricaturista Lemmo Lemmi. Filho de pai e mãe italianos, Lemmi orgulhava-se de ter nascido no largo do Paissandu. Nos seus desenhos, ele assinava sob o pseudônimo de Voltolino. Também estava nesse grupo o jovem Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, estudante da Escola Politécnica, que mais tarde daria vida ao fascinante personagem Juó Bananère.
Pronto. O time de O Pirralho passou a trabalhar uma variedade de temas com inovações estéticas e fortes traços de sátira. Por conseguinte, passa a encampar um pouco do espírito artístico inovador que se faria sentir no grupo modernista de São Paulo. E, assim, as contribuições intelectuais foram se avolumando na caminhada que, em 1922, se transformou na Semana de Arte Moderna. Foi nas páginas desse jornal que Oswald de Andrade publicou trechos da primeira versão de seu romance Memórias sentimentais de João Miramar.
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O Pirralho durou até fevereiro de 1918, e, enquanto existiu, nem sempre teve à sua frente o seu fundador. Em 1912, Oswald de Andrade, aos 22 anos, viajou para a Europa, onde passou sete meses e conheceu vários países. Ao voltar para o Brasil, assume de volta a direção de O Pirralho e avança com as publicações satíricas e modernistas.
Muitos episódios antecederam a Semana até que, finalmente, chega o ano de 1922. Entre os dias 13 e 17 de fevereiro, o Teatro Municipal de São Paulo recebe o evento e agita as ruas de São Paulo. Ali foram reunidos brilhantes expoentes. A praça Ramos de Azevedo, centro da capital paulista, marcou essa história. Mário de Andrade tinha publicado seu primeiro livro, intitulado Há uma gota de sangue em cada poema, em 1917, com apenas 24 anos. Sua obra foi considerada por muitos críticos de arte literária como um dos marcos inaugurais do modernismo brasileiro. Mário tinha apenas 28 anos de idade quando a Semana aconteceu. Todos os participantes eram jovens. Todo mundo jovem. Jovens, sim, mas leitores assíduos. E foi assim — lendo, escrevendo e participando — que aqueles jovens revolucionaram a história do Brasil.
Além de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, nomes hoje conhecidos do grande público, como o compositor Heitor Villa-Lobos, o escultor Victor Brecheret e os artistas plásticos Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Vicente do Rego Monteiro, participaram da Semana. À época, os escritores mais comentados do Brasil eram o poeta Olavo Bilac e o versátil escritor maranhense Coelho Neto. Oswald de Andrade chegou a dizer que, afora esses nomes, não se tinha muito o que falar de literatura brasileira.
A Semana de 22, então, foi marcada por muitas controvérsias e vale dizer que ainda hoje é objeto de estudo para artistas e pesquisadores que, de diversas formas, refletem sobre os processos artísticos propostos pelos primeiros modernistas, também chamados de modernistas canônicos. De um lado, estão pesquisadores que refletem a Semana como um grande momento de ruptura para as artes no país. De outro, estudiosos que defendem que a Semana de Arte Moderna foi somente um evento entre os diversos espaços de discussão e criação sobre o modernismo espalhados pelos estados brasileiros.
Sendo assim, apesar de a Semana de 22 ser considerada um marco — se não transformador, mas simbólico — para as artes plásticas, músical, literária, teatro e arquitetura brasileira, as propostas começaram a ser gestadas, anos antes, por artistas e escritores de diversas partes do país. Daí a necessidade de compreender não somente a Semana e seu legado, mas também os passos anteriores à sua realização. Foi, de fato, um passo-a-passo que durou tempos e um circuíto sequencial de insatisfação em relação a velhos paradigmas que, enfim, emplacaram o desenvolvimento de que hoje desfrutamos, apesar da política que temos e dos governantes que nos tangem. Mas, a exemplo dos jovens intelectuais daquela época, se os de hoje se voltarem para o mundo da leitura, não seremos mais dominados pelos dominantes, mas, sim, participantes e certamente agentes de transformação social. Como disse o escritor Oscar Wilde: "A insatisfação é o primeiro passo para o progresso de um homem ou de uma nação".
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